Folha de S. Paulo


Trechos de textos mencionados no ensaio de Márcio Suzuki

Addison
"The Spectator", n. 487
Terça-feira, 18 de setembro de 1712.

- Cum prostrata sopore
Urget membra quies, et mens sine pondere ludit -1

Embora tenha havido vários autores que escreveram sobre sonhos, em geral eles os consideraram somente como revelação do que já aconteceu em partes distantes do mundo, ou como presságios do que está por acontecer em períodos futuros do tempo.

Considerarei esse assunto noutra luz, já que os sonhos podem nos dar alguma ideia da grande excelência da alma humana e alguma sugestão sobre sua independência em relação à matéria. Em primeiro lugar, nossos sonhos são grandes exemplos daquela atividade que é natural à alma humana, e que não está no poder do sono mitigar ou diminuir. Se o homem se mostra cansado e abatido com os labores do dia, essa parte ativa de sua composição ainda está ocupada e operosa. Se os órgãos dos sentidos precisam do devido repouso e revigoramentos necessários, e se o corpo já não consegue manter o ritmo da substância espiritual à qual está unido, a alma se ativa em suas diversas faculdades e continua ativa até que seu parceiro novamente se qualifique para lhe fazer companhia. Nesse caso, os sonhos se parecem com relaxamentos e divertimentos da alma desimpedida de sua máquina, com seus jogos e recreações quando põe sua obrigação para dormir.

Em segundo lugar, sonhos são um exemplo da agilidade e perfeição que é natural às faculdades da mente, quando estão separadas do corpo. A alma é obstada e retardada em suas operações quando age em conjunto com um companheiro tão pesado, cujos movimentos são difíceis de manejar. Nos sonhos, porém, é maravilhoso observar com que jovialidade e alacridade ela se exerce. O vagar da fala constrói discursos impremeditados, ou conversa prontamente em línguas com que não se tem quase nenhuma familiaridade. O indivíduo sério transborda em gracejos, o obtuso em réplicas e tiradas espirituosas. Não há ação mais penosa para a mente do que a invenção; todavia, nos sonhos ela trabalha com uma facilidade e atividade que não conhecemos quando se emprega essa faculdade. Por exemplo, acredito que todo mundo sonhe, em algum momento ou outro, que está lendo artigos, livros ou cartas; nesse caso, a invenção age tão prontamente, que a mente é enganada e toma suas próprias sugestões por composições de outros.

Citarei a esse respeito uma passagem da Religio Medici, na qual o inventivo autor faz um relato sobre o que se passa com ele em seus pensamentos despertos ou sonhando. Somos um pouco mais que nós mesmos em nossos sonhos, e o cochilo do corpo não parece ser senão o despertar da alma. Ele é o litígio dos sentidos, mas a liberdade da razão; e nossas concepções despertas não se igualam aos caprichos de nossos sonos. No meu natalício, meu ascendente estava num signo de água, escorpião: nasci na hora planetária de Saturno, e penso ter em mim um pedaço daquele planeta de chumbo. Não sou nada engraçado, nem dado ao riso e à farra em sociedade; no sonho, porém, posso compor uma comédia inteira, observar a ação, apreender os gestos e rir de seus efeitos quando acordado. Se minha memória fosse tão confiável quanto minha razão ali é fecunda, eu jamais estudaria senão em meus sonhos; e também escolheria esse momento para minhas devoções; mas nossas memórias, mais grosseiras, compreendem tão pouco nossos entendimentos abstratos, que esquecem a estória, e só conseguem relatar a nossas almas despertas um conto confuso e fraccionado do que se passou. - Assim, observou-se que os homens algumas vezes, na hora da partida, falam e raciocinam sobre si mesmos, pois então a alma, principiando a ficar livre dos ligamentos do corpo, começa a discursar como ela mesma num tom acima da mortalidade.

Podemos igualmente observar, em terceiro lugar, que as paixões afetam a mente com maior força quando estamos dormindo do que quanto estamos acordados. Neste momento, alegria e tristeza nos dão sensações mais vigorosas de dor e prazer do que em qualquer outro. Assim também a devoção, como assinalou o excelente autor acima mencionado, cresce e se inflama de um modo bem particular, quando surge na alma num momento em que o corpo é assim colocado em repouso. A experiência informará a cada um nessa matéria, embora seja bem provável que isso pode ocorrer de modo diferente em constituições diferentes. Concluirei esse ponto com os dois problemas seguintes, que deixarei para meu leitor solucionar. Supondo-se que um indivíduo é sempre feliz em seus sonhos e miserável em seus pensamentos despertos, e que sua vida é dividida igualmente entre os dois, ele seria mais feliz ou mais miserável? Se outro indivíduo fosse um rei em seus sonhos e um mendigo acordado, e sonhasse em conformidade com isso, e segundo planos tão contínuos e ininterruptos como aqueles segundo os quais pensa quando acordado, seria ele na realidade um rei ou um mendigo, ou não seria antes os dois?

Há outra circunstância que, parece-me, nos dá uma ideia bem elevada da natureza da alma no que diz respeito ao que se passa nos sonhos, isto é, a inumerável multidão e variedade de ideias que então nela surge. Se o ser ativo e atento fosse consciente apenas de sua própria existência em tal momento, que dolorosa solidão não seriam as horas de sono? Se a alma sentisse seu ser só nos momentos de sono da mesma maneira que o sente quando acordada, o tempo não pairaria pesadamente sobre ela, como de fato frequentemente o faz, quando ela sonha que se encontra numa tal solidão?

- Semperque relinqui
Sola sili, semper longam incomitata videtur
Ire viam -
Virgílio2

Faço, porém, essa observação apenas de passagem. O que gostaria de fazer notar aqui é aquele maravilhoso poder da alma, de produzir a própria companhia de si mesma nessas ocasiões. Ela conversa com um sem-número de seres de sua própria criação, e é transportada para milhares de cenas que ela mesma monta. Ela mesma é o teatro, os atores e os espectadores. Isso me traz à mente um dito que me agrada imensamente, e que Plutarco atribui a Heráclito: todos os homens, quando estão acordados, se encontram num só mundo comum; mas cada qual, quando está dormindo, se encontra num mundo seu. O homem acordado tem conhecimento do mundo da natureza; quando está dormindo, ele se retira para o mundo privado que lhe é particular. Parece haver nessa consideração algo que nos sugere a grandeza e perfeição natural da alma, que é mais para ser admirada do que explicada.

Não devo omitir aquele argumento em favor da excelência da alma cuja fonte encontrei citada como sendo de Tertuliano, isto é, seu poder divinatório nos sonhos. Que tenham sido feitas muitas dessas divinações, não é contestado por ninguém que acredita nas Sagradas Escrituras, ou que tenha o mínimo grau de fé histórica comum; pois há inumeráveis testemunhos dessa natureza em muitos autores, antigos e modernos, sagrados ou profanos. Se tais negros presságios, tais visões noturnas procedem de algum poder da alma durante esse seu estado de abstração, ou de alguma comunicação com o ser supremo, ou de alguma operação espíritos subordinados, tal tem sido objeto de grande disputa entre os eruditos; o fato, penso, é incontestável e como tal tem sido considerado pelos maiores escritores, que jamais foram suspeitos de superstição ou entusiasmo.

Não suponho que a alma esteja nesses casos inteiramente livre e separada do corpo; basta que não tenha caído tanto e esteja tão imersa na matéria, nem embaraçada e confusa em suas operações em virtude daqueles movimentos do sangue ou espíritos animais, como quando opera a máquina nas suas horas de vigília. A união com o corpo é frouxa o bastante para conceder mais atividade à mente. A mente parece recolhida em si mesma e recupera aquela elasticidade que está rompida e enfraquecida quando ela trabalha em maior colaboração com o corpo.
Se não são argumentos, as especulações que fiz aqui são pelo menos fortes sugestões não apenas acerca da excelência da alma humana, mas de sua independência em relação ao corpo; e se não provam, elas ao menos confirmam esses dois pontos importantes, que são estabelecidos por várias outras razões que são inteiramente irrefutáveis.

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Jean Paul (Friedrich Richter)
"Sobre o Sonhar" (1796). In: "Correspondência de Jean Paul e Carreira Percorrida por Ele até Agora".

O sonho é arte poética involuntária; e mostra que o poeta trabalha mais que um outro indivíduo com o cérebro físico. Por que ninguém ainda se espantou de que nas scènes détachées [cenas destacadas] do sonho ele inspira, como um Shakespeare, a linguagem mais apropriada às personagens em ação, as deixas mais marcantes de suas naturezas, ou melhor, por que ninguém ainda se espantou de que são elas que servem de ponto [teatral] para ele, e não ele para elas? O poeta genuíno, ao escrever, é igualmente o ouvinte, não o professor de línguas de suas personagens, isto é, ele não remenda seus diálogos por uma estilística postiça do conhecimento humano penosamente aprendida, mas as vê vivas, como no sonho e, então, as ouve. A observação do doutor Victor3, de que um oponente em sonho frequentemente lhe faz objeções mais difíceis do que um oponente real, também é feita pelo dramaturgo que, antes do entusiasmo, de modo algum pode ser o porta-voz da trupe, mesmo sendo o que facilmente escreve os seus papéis. Que os figurantes do sonho nos surpreendem com respostas que nós mesmos lhes inspiramos, é natural; também em vigília cada ideia surge subitamente como uma faísca, que atribuímos a nosso esforço; no sonho, entretanto, nos falta a consciência deste [esforço], e temos portanto de atribuir a ideia à figura que temos diante de nós, à qual transferimos o esforço.

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E. T. A. Hoffmann
"O Magnetizador". In: "Fantasias à Maneira de Callot", vol. 2, 1814.

De minha parte, tendo um bom humor inabalável, principalmente à tarde, como todos reconhecem, eu preparo cerimoniosamente os sonhos da noite, deixando que passem pela minha mente milhares de coisas malucas, que depois, à noite, minha fantasia exibe nas cores mais vivas e de uma maneira altamente divertida; porém, o que mais prefiro são minhas representações teatrais. O que você quer dizer com isso?, perguntou o Barão. No sonho, continuou Bickert, como observou um escritor espirituoso, somos esplêndidos dramaturgos e atores, porque captamos cada caráter exterior em todos os seus traços individuais e o representamos com a mais completa verdade. É sobre isso que construo e penso por vezes nas frequentes aventuras cômicas de minhas viagens, nos muitos caracteres cômicos com os quais convivi, e então à noite minha fantasia me proporciona o espetáculo mais divertido do mundo, fazendo essas personagens entrar em cena como todos os seus traços excêntricos e suas maluquices.

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Soren Kierkegaard
"Uma primeira e última declaração". In: "Pós-Escrito não Científico Conclusivo às Migalhas Filosóficas (II)".

Em conformidade com a ordem e a formalidade venho por meio desta reconhecer, o que de fato mal terá interesse para alguém saber, que eu sou, como se diz, o autor de: Ou - ou (Victor Eremita), Copenhague, fevereiro de 1842: Temor e tremor (Johannes de Silentio), 1843; Repetição (Constantin Constantius), 1843; O conceito de angústia (Vigilius Hafniensis), 1844; Prefácios (Nicolaus Notabene), 1844; Migalhas filosóficas (Johannes Climacus), 1844; Etapas no caminho da vida (Hilarius Bogbinder: William Afham, O Juiz, Frater Taciturnus), 1845; Pós-escrito conclusivo às migalhas filosóficas (Johannes Climacus), 1846; um artigo em A pátria, n. 1168, 1843 (Victor Eremita); dois artigos em A pátria, janeiro de 1846 (Frater Taciturnus).

A razão de minha pseudonímia ou polinímia não foi uma razão casual em minha pessoa (ela não ocorreu certamente por temor à penalidade legal, pois a esse respeito não sei de ter cometido delito a ninguém, e tanto o editor como o censor, na condição de funcionário público, sempre foram informados sobre quem era o autor quando o escrito era publicado), mas uma razão essencial na produção mesma, que, em virtude das falas4, em virtude da variada diferença psicológica das individualidades, exige poeticamente a desconsideração do bem e do mal, da contrição e da entrega, do desespero e da presunção, do sofrimento e do júbilo etc., desconsideração esta que está limitada apenas pela consequência psicológica, a qual nenhuma pessoa de fato vivendo nos limites morais da realidade aceita ou pode aceitar para si. O que foi escrito é, certamente, meu, mas somente na medida em que coloco na boca de uma individualidade poética real produzida a visão de sua vida em falas audíveis. Porque minha relação é mais exterior do que a de um poeta que cria personagens poeticamente e, no entanto, ele mesmo é o autor no prefácio. Ou seja, eu sou impessoal ou, antes, sou pessoalmente na terceira pessoa um ponto de teatro, que produziu poeticamente autores, cujos prefácios, por sua vez, são produtos deles, assim como são os seus nomes. Assim, não há nos livros pseudônimos uma única palavra que seja minha; não tenho nenhuma opinião acerca deles a não ser como um terceiro, nenhum saber sobre o sentido deles a não ser como leitor, nem a mais remota relação com eles, já que tal relação é impossível para uma comunicação duplamente refletida.5 Uma só palavra pessoal minha em meu próprio nome seria o mais presunçoso esquecimento de si, o que, considerado dialeticamente, seria incorrer essencialmente no mesmo que aniquilar os pseudônimos. Estou tão longe de ser o Sedutor ou o Juiz em Ou - ou, exatamente assim como estou longe de ser o editor Victor Eremita. Este é um pensador subjetivo poeticamente real, tal como será reencontrado em In vino veritas.6 Estou tão longe de ser Johannes de Silentio em Temor e Tremor, exatamente como estou longe de ser o Cavaleiro da Fé apresentado por ele ou, ainda, o autor do prefácio àquelas folhas, as quais são a fala da individualidade de um pensador subjetivo poeticamente real. Na história da paixão ("Culpado? - Não culpado?") estou também exatamente longe de ser o Quidam7 do experimento enquanto experimentador, pois o experimentador é um pensador subjetivo poeticamente real e o experimentado, sua produção psicologicamente consequente. Eu sou o que é indiferente, ou seja, é indiferente o que sou e como sou, justamente porque, de novo, é absolutamente estranha a tal produto a questão de saber se o que sou ou como sou é também indiferente no mais íntimo de mim.

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Ralph Waldo Emerson
"Poesia e Imaginação" (1872). In: "The Works of Ralph Waldo Emerson". Londres: Routledge & Co., 1902. Edição utilizada por Fernando Pessoa.

Barthold Niebuhr8 disse-o bem, que "há pouco mérito em inventar uma ideia boa ou uma situação atraente, enquanto o que ouvimos é tão-somente a voz do autor. Assim como um ser que é chamado à vida pelas artes mágicas age independentemente do impulso do mestre tão logo tenha ganhado existência, assim também o poeta cria suas personagens e então observa e relata o que elas dizem e falam. Tal criação é poesia, no sentido literal do termo, e sua possibilidade é um enigma insondável. A inflamada intensidade do discurso pertence ao poeta, brotando dos lábios de cada um dos seus seres mágicos em pensamentos e palavras peculiares à sua natureza".

Essa força de representação planta de tal modo suas figuras diante dele, que ele as trata como reais, conversa com elas como se estivessem fisicamente presentes; coloca em sua boca palavras que elas falariam, e é tocado por elas como por pessoas. Ampla é a diferença entre escrever versos elegantes para revistas e criar essas novas pessoas e situações - uma nova linguagem com ênfase e realidade. O humor de Falstaff, o terror de Macbeth, têm cada qual o seu enxame de ideias e imagens apropriadas, como se Shakespeare conhecesse e apresentasse os homens, em vez de inventá-los em sua escrivaninha. Esse poder aparece não só no esboço ou retrato de seus atores, mas também na postura, comportamento e estilo de cada indivíduo. Ben Jonson disse a Drummond que "Sidnei não respeita o decoro ao fazer cada um falar tão bem como ele mesmo.

Todos nós temos uma chave para esse milagre do poeta, e o ignorante tem experiências que podem lhe explicar Shakespeare - uma chave, isto é, sonhos. Nos sonhos somos verdadeiros poetas; criamos os personagens do drama; damos-lhes as figuras, os rostos, as roupas apropriadas; eles são perfeitos em seus órgãos, atitudes, maneiras; mais ainda, falam de acordo com os próprio caracteres, não de acordo com o nosso; - falam conosco, e ouvimos com surpresa o que elas dizem. De fato, duvido que o melhor dos poetas escreva uma peça em cinco atos que possamos comparar em consistência de invenção a essa peça em cinco atos não-escrita, composta pelo mais tosco roncador no chão de uma delegacia.

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Notas:

1 Petrônio. Tradução literal: "Pois quando o sono com seu torpor pesa sobre os membros prostrados, e a mente brinca sem peso"

2 Eneida, 4, 466. Tradução literal: "sempre abandonada, só consigo mesma, [Dido] parecia sempre seguir por um longo caminho sem companhia".

3 Personagem do romance Hesperus (1795), escrita pelo próprio Jean Paul. (NT)

4 Em dinamarquês, Replik. Literalmente réplica, mas com o sentido de "fala" de uma personagem teatral. (NT).

5 Til en dobbelt-reflekteret Meddelelse. O sentido parece ser: a relação privada com os livros pseudônimos é impossível, uma vez que ela passa por uma dupla mediação reflexiva. (NT)

6 Primeiro texto de "Etapas no Caminho da Vida". (NT)

7 Personagem de Culpado? - Não culpado, terceiro texto de "Etapas no Caminho da Vida". (NT)

8 Estadista e historiador nascido na Dinamarca e que viveu na Alemanha (1776-1831). (NT).


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