Folha de S. Paulo


No reino das águas turvas: O novo filme de Matthew Barney

RESUMO Conhecido pelo ciclo "Cremaster", o artista americano levou sete anos para finalizar seu novo filme, que mistura lendas egípcias, Norman Mailer e lutadores brasileiros. Além da produção de cinco horas, esculturas, desenhos e fotografias a ela relacionados integram exposição a ser inaugurada em setembro em Los Angeles.

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O novo trabalho de Matthew Barney cheira mal. O artista americano, conhecido pelo celebrado ciclo de filmes "Cremaster", é o primeiro a aparecer na tela de "River of Fundament" (rio de fundamento), saindo de um rio de fezes e metendo a mão numa privada para pegar um cocô. Ele o embrulha numa folha de ouro, antes de ser sodomizado por uma criatura que ejacula mercúrio. Tudo isto tudo apenas na sequência de abertura do longa de mais de cinco horas, exibido em Los Angeles em abril. O longa fará parte de uma grande exposição a ser inaugurada em setembro num museu da cidade.

Realizado num período de sete anos, "River" é sua obra de maior fôlego desde "Cremaster" (1994""2002) e também seu trabalho mais narrativo, com atores de verdade e até alguns rostos famosos, como Maggie Gyllenhaal. Funciona quase como uma ópera, com uma história épica difícil de compreender sem uma leitura prévia do libreto. Lendas do Egito Antigo, os fantasmas do escritor Norman Mailer (1923-2007) e a genitália de Paul Giamatti se intercalam com performances gravadas ao vivo, uma delas com uma dupla de lutadores brasileiros.

Reprodução
Cenas de
Cena de "River of Fundament", novo filme do artista plástico Matthew Barney (na foto)

O cenário central é a casa de Mailer em Brooklyn Heights, em Nova York, reconstruída pela equipe de Barney e com seus livros originais. O escritor é o protagonista, e a história começa em seu velório na sala de jantar. Enquanto seus amigos relembram o grande autor de "A Canção do Carrasco" (1979), sua alma começa a reencarnar no subsolo da residência, por onde precisa atravessar o esgoto.

Antes do mergulho, é bom saber o contexto. Perto da morte, aos 84 anos, Mailer pediu que Barney lesse e considerasse adaptar seu livro "Noites Antigas" (1983). Para Mailer, o calhamaço de mais de 600 páginas era sua obra-prima, embora tivesse sido destruída pela crítica no lançamento.

Barney, que havia escalado Mailer para viver o mágico Houdini em "Cremaster 2", topou a encomenda, mas impôs seus próprios termos: os deuses egípcios superssexualizados do romance são transpostos para os EUA de hoje, ora como criaturas fedorentas que assombram a casa de Mailer, ora como automóveis clássicos que passam por rituais de desmanche.

Um deles é um Chrysler Crown Imperial 1967, o mesmo modelo usado em "Cremaster 3" e um dos vários momentos de "déjà-vu" de "River of Fundament".

"Inúmeros fatores me atraíram no livro", disse Barney, 48, num encontro com o público no museu Hammer de Los Angeles, mostrando um intrincado gráfico que conecta as sete fases de renascimento na mitologia egípcia com diferentes tipos de metais.

"Há na história essa linguagem forte dos metais, que me interessa bastante e que surge nas minhas esculturas. E gosto muito do jeito como ele descreve as entranhas do mundo e a decadência do corpo."

"Consideramos bastante a tradição da ópera e, se queríamos brincar com este gênero, precisávamos de um libreto. O livro foi útil neste sentido, para criar o texto, mas também como algo para odiar e contra que trabalhar. Porque é muito fácil odiar o livro, ainda que seja fantástico", disse o artista

Barney também tirou inspiração de uma resenha em que Harold Bloom sugere que "Noites Antigas" tem muito da vida de Mailer, um autor que sempre tentou, sem sucesso, alcançar o status de Ernest Hemingway (1899-1961).

No romance, um nobre, invejoso do faraó, aprende feitiçaria com fezes para poder ter vida eterna. No filme, o nobre é Mailer, interpretado por atores diferentes (Stephen Payne e John Buffalo Mailer, filho do escritor), que adentram carcaças de animais para poder renascer. Já o faraó é Giamatti, que participa ativamente do velório e recebe massagens peculiares debaixo da mesa.

Quando tudo começa a ficar complexo ou escatológico demais, "River" dá uma pausa para mostrar incríveis performances coreografadas em Los Angeles, Detroit e Nova York, enchendo as caixas de som do cinema. A primeira acontece com cinco bandas tocando ao mesmo tempo em pontos diferentes de um bairro e caminhando para uma concessionária de carros. O Chrysler, simbolizando o velho Mailer, é desmantelado e transformado num Pontiac Firebird Trans Am 1979 novinho em folha.

O filme é assinado em parceria com o compositor Jonathan Bepler, responsável pela trilha de "Cremaster". Em "River", a música ajuda a contar a cena, e Bepler participou de todo o processo.

"Fazer só a trilha não era algo satisfatório para mim. Em 'River', tentamos fazer com que as duas coisas acontecessem ao mesmo tempo. Comecei a trabalhar na música antes mesmo de as imagens existirem", disse Bepler, que usou gêneros diversos, como canto lírico, rap, e muitos grunhidos.

"Tínhamos só um conceito; eu trabalhava na minha concepção dele, e Matthew, na sua. Depois de um tempo comparávamos as coisas e nos surpreendíamos com o que tínhamos. Estando de acordo quanto ao conceito, quase nunca a música estava errada."

EM PORTUGUÊS

Outra coreografia acontece ao som de palavrões em português, quando dois mecânicos de uma oficina de Nova York lutam numa jaula. Os dois são brasileiros que moram na cidade, o professor de jiu-jítsu Magno Gama e o músico e faixa preta da modalidade Pablo Silva. Por telefone, Silva contou que nunca tinha ouvido falar de Barney e que soube do trabalho no site de classificados Craigslist, dois anos atrás.

"O cara [Barney] é gente fina pra caramba, educadíssimo. Ele me contou que gostava muito de luta e que sabia que os brasileiros eram bons nisto", disse o carioca de 39 anos, que ganhou US$ 1.500 por três dias de filmagens.

A cena é uma leitura moderna de uma luta entre deuses, na qual um acaba castrado, e o outro, sem um olho. "Até hoje não entendi o que acontece no filme", comentou o baterista de rock e MPB, que viu o produto final na pré-estreia em Nova York. "Achei interessante, legal, mas cansativo no final. É abstrato, louco demais."

Após "Cremaster", Barney realizou um filme durante o Carnaval de Salvador, em 2004, gravado ao vivo durante a passagem de um trio elétrico criado por ele e pelo músico americano radicado no Brasil Arto Lindsay. O resultado foi "De Lama Lâmina", repleto de mitologias do candomblé. Uma das esculturas do trabalho está hoje no Instituto Inhotim, em Minas.

Ele também dirigiu "Drawing Restraint 9" (2005), uma história de amor que se passa entre o Japão e a Antártica, pontuada por cerimônias do chá e rituais de caça a baleias, exibido nos festivais de cinema de Veneza e Toronto. Os protagonistas são Barney e sua então mulher, Björk, que assinou a trilha sonora –os dois se divorciaram em 2013, fato na origem do mais recente álbum da cantora islandesa, "Vulnicura" (2015).

Assim como nos projetos anteriores, "River of Fundament" vem carregado de trabalhos paralelos que exploram e expandem o universo do filme. Cerca de 15 esculturas que pesam até 14 toneladas, além de desenhos, fotografias e objetos de cena, serão exibidas entre setembro deste ano e janeiro no museu The Geffen Contemporary at Moca, em Los Angeles.

A cidade é a primeira nos EUA a receber a mostra, que nasceu no Haus der Kunst, em Munique, sob curadoria de Okwui Enwezor –diretor do museu e responsável pela atual Bienal de Veneza– e seguirá de volta para a Europa em 2016.

"É algo muito inovador na carreira de Matthew, que começou a trabalhar com diversas técnicas de fundição, algumas bem antigas, e com materiais novos, como ferro, bronze, zinco e enxofre", disse Lanka Tattersall, curadora da exposição no Moca. "Isto permite que o artista se abra para uma linguagem iconográfica completamente nova."

O museu vai equipar uma sala de cinema com som especial para exibir "River" e organizará uma performance para a abertura para convidados. "Um grupo de homens fortes vai puxar uma escultura; as cordas vão ficar nas paredes, como um rastro do acontecimento", explicou Tattersall. Para ela, assim como "Cremaster", "River" tem a força de criar imagens originais que seguirão reverberando no mundo das artes plásticas.

"Muitas cenas ficaram na minha mente, como as de Detroit, quando o esqueleto de um carro é derretido numa fundição e presenciamos uma massa de metal se esparramando", disse. "É como se ele transformasse a paisagem puramente americana numa forma de escultura."

FERNANDA EZABELLA 34, é jornalista.


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