Folha de S. Paulo


Leia trecho de "O Pai Morto", de Donald Barthelme

SOBRE O TEXTO Publicado em 1975, o romance "O Pai Morto" será lançado pela primeira vez no Brasil, pela editora Rocco, em julho.

*

Foi em um dia bem parecido com este, disse o Pai Morto, que eu me tornei pai da Mesa de Sinuca de Ballambangjang.

Do quê?

É uma história bem interessante, disse o Pai Morto, e vou contá-la agora. Fui cativado ao avistar certa donzela, uma donzela com cabelos cor de graúna

Olhou para Julie, que passou a mão nos cabelos muito muito escuros.

Diego Maxx

Uma donzela com cabelos cor de graúna e imensa beleza. Chamava-se Tulla. Enviei a ela muitos presentes. Maquininhas, acima de tudo, uma máquina para marcar o nome em tiras plásticas, uma máquina para extrair grampos de documentos, uma máquina para encurtar as unhas, uma máquina para remover amassados de tecidos com ajuda de vapor. Bem, ela aceitou os presentes, até aí tudo bem, mas a mim ela rejeitou. Como podem imaginar, não aprecio ser rejeitado. Não estou acostumado com isso. Em meus domínios isso não acontece, mas para o meu azar ela morava um tantinho além dos limites do condado. Não gosto de ser rejeitado. Na verdade é uma coisa pela qual nutro uma aversão extrema. Então me transformei em um corte de cabelo

Em um cortador de cabelo?, Julie perguntou.

Em um corte de cabelo, disse o Pai Morto. Eu me transformei em um corte de cabelo e me posicionei na cabeça de um membro do meu séquito, um sujeito bem atraente, mais jovem do que eu, mais jovem e mais estúpido, isso nem preciso dizer, mas ainda assim não desprovido de certo encanto rude apesar de mais careca que um ovo de avestruz, e por conta disso um tanto acanhado na presença de damas. Usando as vastas costeletas esvoaçantes como se usasse os joelhos para guiar um cavalo

O cavaleiro ainda está nos seguindo, Thomas registrou. Por que será?

eu o remeti a galope rumo à deliciosa Tulla, prosseguiu o Pai Morto. Tão superior era o corte de cabelo, ou seja, eu, em conjunto com a juventude efervescente, pela qual não o culpo, que ela sucumbiu de imediato. Imaginem. A primeira noite. Uma pele sem par. No momento crucial eu me transformei de volta em mim mesmo (sumindo o serviçal) e nós dois, ela e eu, olhamos um para o outro e nos demos por satisfeitos. Passamos muitas noites juntos roarrugindo e plenos de furioso deleite. Nessas noites eu a emprenhei e me tornei pai da ficha de pôquer, da caixa registradora, do espremedor de frutas, do kazoo, do pretzel de borracha, do relógio-cuco, do chaveiro, do cofrinho, do pantógrafo, do cachimbo de bolhas de sabão, do saco de pancadas tanto o pesado quanto o leve, do mata-borrão, do soro nasal, da Bíblia em miniatura, da ficha para caça-níqueis e de muitos outros artefatos culturais úteis e benévolos, bem como de alguns milhares de crianças comuns. Também me tornei pai de diversas instituições úteis e benévolas como a cooperativa de crédito, a carrocinha e a parapsicologia. Gerei também diversos reinos e territórios, todos a este superiores em terreno, climatologia, leis e costumes. Exagerei, mas estava apaixonado, loucamente apaixonado, é tudo que tenho a dizer em minha defesa. Foi um período muito criativo, mas minha querida, tendo parido toda essa abundância sem reclamar ou manifestar qualquer reprovação, acabou morrendo. Em meus braços, é claro. Suas últimas palavras foram "agora chega, Papi". Fiquei inconsolável e, como se possuído por um demônio, desci ao submundo buscando resgatá-la.

O Pai Morto
Donald Barthelme
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Ali eu a encontrei, disse o Pai Morto, após muitas aventuras por demais tediosas para relatar. Ali eu a encontrei, mas ela se recusou a voltar comigo porque já havia provado a comida-do-inferno e se tornado uma apreciadora, aquilo vicia. Era vigiada por oito trovões que pairavam sobre ela e todas as noites lhe traziam iguarias ainda mais infernais, e vigiada também por horrendos-homens-
infernais que me atacaram com doces e guloseimas tentando me escorraçar. Todavia despi as vestes e as lancei contra os horrendos-homens-infernais, peça por peça, e cada peça que encostava em um horrendo-
homem-infernal, ainda que apenas roçasse de leve, fazia com que ele se desfizesse em suspiros vaporosos. Não havia como eu ficar, não havia nada que me fizesse ficar; ela era deles.

Em seguida, disse o Pai Morto, para me purificar das impurezas que tinham se infiltrado em mim no submundo, mergulhei de cabeça no rio subterrâneo Geleia, lavei ali o olho esquerdo e me tornei pai da deidade Pulas, que governa o progresso do ricochete ou o que quica onde e com qual efeito, e lavei o olho direito e me tornei pai da deidade Rastelo, a quem cabe o governo dos efeitos colaterais/imprevisíveis. Em seguida lavei o nariz e me tornei pai da deidade Gorno, que mantém cálido o interior das sepulturas, e da deidade Libet, que não sabe o que fazer e assim serve de inspiração para todos nós. Caí então vítima de oitocentas miríades de pesares e estava pesaroso quando um verme chegou perto de mim se retorcendo enquanto eu arrancava os cabelos e me convidou para jogar sinuca. Faz bem, ele disse, para esquecer. Não tínhamos, respondi, uma mesa de sinuca. Bem, ele disse, você não é o Pai Morto? Então me dediquei a engendrar a Mesa de Sinuca de Ballambangjang, criando seu pano verde com o conteúdo de um campo de alfafa próximo dali e suas pernas com postes de telefone próximos dali e suas caçapas escuras com as bocas dos horrendos-homens-infernais restantes que forcei a se postarem boquiabertos nos pontos adequados

Qual era o nome do verme?, Thomas quis saber.

Esqueci, respondeu o Pai Morto.

DONALD BARTHELME (1931-89) foi um jornalista e escritor americano.

DANIEL PELLIZZARI, 41, é escritor, tradutor e editor, autor de "Digam a Satã que o Recado Foi Entendido" (Companhia das Letras).

DIEGO MAXX, 27, é artista plástico.


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