Folha de S. Paulo


Dupla escreve vigoroso romance de formação entre EUA e Iraque

Porque as forças armadas são formadas integralmente por voluntários e os norte-americanos não foram convocados a fazer qualquer sacrifício, em casa, as guerras do Iraque e do Afeganistão criaram uma brecha entre os soldados ("o outro 1%") e os civis dos Estados Unidos. Enquanto "lá" as tropas encaravam ferimentos e morte, a vida "aqui" continuava mais ou menos como antes dos ataques do 11 de setembro. Muitos livros recentes sobre essas guerras, de ficção e não ficção, tomaram por tema esse descompasso, examinando as dificuldades enfrentadas pelos veteranos em sua volta para casa em um país que os ignora, o que os leva a se sentirem alienados e excluídos, e em muitos casos ainda sofrendo os traumas físicos e emocionais da guerra.

"War of the Encyclopaedists" adota abordagem diferente quanto a esse tema. O vigoroso romance é colaboração entre dois amigos: Christopher Robinson, mestre em belas artes pelo Hunter College e finalista do concurso Yale Younger Poets, e Gavin Kovite, advogado militar e antigo comandante de um pelotão de infantaria. E apresenta um par de protagonistas cujas vidas de muitas maneiras espelham as dos autores.

Halifax Corderoy está a ponto de começar sua pós-graduação na Universidade de Boston; seu melhor amigo, Mickey Montauk, também está a ponto de começar uma pós, mas tem de mudar seus planos abruptamente quando a unidade da Guarda Nacional em que ele serve é ativada e ele é enviado a Bagdá. Os dias despreocupados de universidade, em Seattle, os dois começam a perceber, não os prepararam bem para as realidades da vida adulta. E eles também veem sua amizade complicada pelos intensos relacionamentos que os dois desenvolvem com uma mulher chamada Mani –um dos amigos se apaixona por ela; o outro se torna seu marido em um casamento de conveniência.

Quanto a isso, "War of the Encyclopaedists" parece estar emulando o clássico filme "Jules et Jim", de François Truffaut, ao mapear um triângulo amoroso entre dois amigos e uma mulher tempestuosa. O romance também trata das desilusões causadas pela guerra e pela vida adulta. E também muda de marcha e se transforma de comédia animada em algo de muito mais triste e grave.

"War of the Encyclopaedists" não tenta, ao contrário de "Jules et Jim", traçar um arco mais amplo da vida de seus protagonistas, e em lugar disso se concentra em um ano crucial que mudará a maneira pela qual Corderoy e Montauk se percebem. Ao mesmo tempo, o texto funciona bem ao conjurar o mundo boêmio dos jovens de 20 e poucos anos que eles frequentam, primeiro em Seattle e depois em Boston, o mundo da geração milênio, no qual ironia é a resposta padrão e as conversas, obras de arte e festas tendem a ter aspas imaginárias em torno delas, e no qual uma postura boêmia e cool serve tanto como lubrificante social quanto como uma forma de blindagem emocional.

Robinson e Kovite também usam os seus dons como observadores sociais a fim de satirizar gentilmente os dois outros mundos rarefeitos nos quais seus protagonistas circulam. No caso de Corderoy, o pretensioso reino da academia, no qual um professor o adverte que ele não está fazendo seu mestrado "apenas em busca de conhecimento", mas deve se tornar "intimamente familiar com o pós-estruturalismo, o novo historicismo, a fenomenologia e a hermenêutica", se aspira ao sucesso. E no caso de Montauk, uma base operacional avançada do exército em Bagdá, por volta do final de 2004, onde o senso comum muitas vezes esbarra na burocracia e os absurdos da ocupação norte-americano ficam envoltos em jargão militar.

Como tenente e comandante de um pelotão, Montauk enfrenta dificuldades para assumir seu papel de liderança e tenta aprender de que forma projetar autoridade. Ele em breve está encarando preocupações mais tangíveis –a realidade cotidiana dos dispositivos explosivos improvisados e das emboscadas, e a perda de diversos camaradas. O corpo de seu tradutor favorito, Aladdin, é encontrado no rio Tigre, e um de seus comandados sofre ferimentos sérios em um atentado suicida, enquanto estava visitando uma loja de suvenires ponderando os prós e contras de "tirar uma foto vestido de Lawrence da Arábia", como presente de aniversário para sua mãe. Muita gente no pelotão "está lentamente perdendo o controle, efeito do estresse que goteja incessantemente, gravando novos e aberrantes padrões em suas personalidades, como riachos subterrâneos em uma caverna de pedra calcária".

Montauk e Corderoy mantém contato editando e reeditando uma página da Wikipédia que criaram sobre eles mesmos. A página, intitulada "Os Enciclopedistas", começa como uma sátira e gradualmente evolui para se tornar uma espécie de espelho –e parábola– das mudanças em suas vidas.

Montauk se sente incapaz de comunicar a qualquer pessoa em casa o que é ser soldado em Bagdá . Mani lhe escreve uma carta na qual diz que a guerra parece "estranhamente falsa" para ela: "Ninguém aqui nem pensa nela, exceto em o quanto ela é estúpida, e quanto embaraço ela nos causa, e o quanto todos odeiam Bush, é claro". Enquanto isso, Corderoy se isola em uma existência narcisista, ao modo de [Ilya] Oblomov (personagem que nunca sai da cama no romance homônimo de Ivan Gontcharov). Ele pensa obsessivamente em Mani, compara sua vida a um "filme medíocre" e chega a contemplar casualmente o suicídio. Não demora a abandonar a universidade e tenta sobreviver com o dinheiro que ganha como cobaia voluntária de experiências médicas.

A trama do romance pode parecer tanto casual demais quanto exageradamente dependente de coincidências, mas corre de um jeito leve e íntimo. Os autores criaram um Iraque e Estados Unidos nos quais as pessoas parecem se encontrar com espantosa facilidade (como, por exemplo, os personagens de Larry McMurtry em "Old West"). Tricia, antiga colega de apartamento de Corderoy, que vai a Bagdá como jornalista freelancer, acidentalmente encontra (ou manobra para encontrar) Montauk, com quem ela dormiu em Boston numa noite qualquer; e seu tradutor, que supostamente deveria oferecer provas independentes quanto ao assassinato de Aladdin, prova ter papel central na investigação do caso.

Mas se essas coincidências e se o suposto artigo de Wikipédia em torno do qual o romance gira podem ocasionalmente incomodar, Robinson e Kovite ainda assim escreveram um cativante romance de formação, que alterna entre diversão, tristeza e elegia –um romance que nos deixa com alguns retratos reveladores dos Estados Unidos, na guerra e na negação, e algumas imagens marcantes de uma dupla de jovens da geração milênio tentando abrir caminho para a vida adulta.

"War of the Encyclopaedists", de Christopher Robinson and Gavin Kovite
Ilustrado, 433 págs., ed. Scribner, US$ 26

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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