Folha de S. Paulo


Já fomos tão modernos: obra faz inventário da habitação social

Ao entrar na modernidade, a arquitetura nos deu edifícios limpos, econômicos, racionais. Janelas em fita envolveram as caixas brancas de Le Corbusier e Mies van der Rohe criou sua famosa casa de vidro. Questão estética à parte, a modernização vinha resolver um problema do pós-Guerra: produzir, em larga escala, teto para populações empobrecidas pelos combates.

No Brasil não foi a guerra, mas a migração de trabalhadores do campo para as fábricas, a partir dos anos 1930, que criou demanda de moradia urbana. Por aqui, arquitetos como Affonso Eduardo Reidy e Eduardo Kneese de Mello, partindo dos ideais modernistas, projetaram conjuntos que são hoje referências históricas.

A base para debater o tema se ampliou com os três volumes de "Os Pioneiros da Habitação Social", organizado por Nabil Bonduki e Ana Paula Koury.

A obra faz um repertório inédito dos conjuntos habitacionais erguidos em um período que coincide com o modernismo arquitetônico brasileiro. Cada um dos 322 empreendimentos é acompanhado por dados técnicos e um breve texto, além de plantas e fotos.

O trabalho de memória apresentado no segundo volume, "Inventário da Produção Pública no Brasil entre 1930 e 1964", enfoca uma arquitetura cotidiana, tratada marginalmente nas faculdades. "A qualidade arquitetônica e urbanística" desse período, diz Bonduki, "não foi retomada depois". "Havia valorização do espaço público, inserção urbana do edifício, diversidade e uso misto", enumera.

Os projetos que os autores consideram mais relevantes para reflexão são esmiuçados no volume 3, "Onze Propostas de Morar para o Brasil Moderno".

A análise proposta pela obra, porém, vai além do objeto arquitetônico. No volume 1, "Cem Anos de Política Pública no Brasil", os arquitetos e seus colaboradores mostram como as visões políticas e os modos de financiamento de cada período moldaram a produção de moradia popular, desde a construção das primeiras habitações públicas no bairro operário de Marechal Hermes, em 1912, no Rio.

A economia política, tão presente no urbanismo francês e na escola de arquitetura da USP, onde Bonduki e Koury pesquisam e lecionam, dá textura ao trabalho. Por exemplo, ao mostrar como o ideal da casa própria foi instrumentalizado, no regime militar, para atrair os trabalhadores. "A casa própria faz do trabalhador um conservador que defende o direito de propriedade", disse então Sandra Cavalcanti, primeira presidente do BNH, Banco Nacional da Habitação, criado em 1964.

ALUGUEL

Até ali, os operários moravam basicamente de aluguel. Fosse na República Velha, quando as casas –cortiços e vilas operárias– eram produzidas pelo mercado, fosse na Era Vargas, quando a habitação elevou-se a questão de Estado, com a produção de conjuntos.

A construção de moradia popular pelo Estado varguista diminuiu o custo da reprodução da força de trabalho. Naquele período, os principais financiadores eram os IAPs (Institutos de Aposentadorias e Pensões), que investiam na construção e usavam os recursos dos aluguéis para alimentar os fundos que administravam.

Segundo Bonduki, essa visão dos conjuntos como patrimônio e investimento colaborou para sua qualidade arquitetônica. Fazia parte das diretrizes do governo Vargas que os empreendimentos provessem os serviços básicos e estivessem ligados à cidade por transporte público.

O conjunto Pedregulho, famoso projeto de Eduardo Affonso Reidy em São Cristóvão, no Rio, se tornou o edifício emblemático daquele momento. Sua lâmina sinuosa ganhou o mundo em revistas especializadas, e sua plasticidade unida à racionalidade construtiva foi aclamada pelo artista e crítico Max Bill, que repudiava a arquitetura de "formas gratuitas" de Niemeyer e a arquitetura moderna brasileira como um todo.

Embora Bonduki e Koury concedam que esse projeto seja a "joia da coroa" da habitação social no Brasil, procuram, em sua obra, desmistificar a visão do conjunto carioca como exceção.

No volume 3, além do recém-restaurado Pedregulho, os autores detalham outros dez projetos escolhidos por sua diversidade, qualidade da proposta de inserção urbana e atualidade.

Um exemplo é o conjunto de Realengo. O primeiro bloco de habitação em larga escala produzido pelo Estado foi implantado no subúrbio da zona oeste do Rio, mas à beira da ferrovia e com todos os equipamentos necessários à vida cotidiana: um núcleo urbano completo conectado ao centro por trem.

No projeto erguido em 1938 pelo Iapi (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários), o arquiteto Carlos Frederico Ferreira inaugurou no país o uso de blocos de concreto, mais econômicos e rápidos de assentar, e divisórias internas de compensado (ainda em boa forma).

A contradição entre modernidade e conservadorismo, tão presente no Brasil se manifestaria, por exemplo, no caso da cidade-jardim de Olaria, construída também no Rio pelo Iapc (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários), que atendia uma categoria profissional mais bem remunerada.

O projeto de Ulysses Hellmeister enfrentou críticas de uma população ainda com hábitos rurais, que estranhou a falta de divisão de lotes e a ideia de habitação mínima, em que os cômodos tinham apenas o espaço necessário a suas funções, acabando por exemplo, com as tradicionais cozinhas de estar.

Em São Paulo, o conjunto Japurá, em frente à Câmara Municipal, foi outra iniciativa a incorporar a ideia de habitação mínima. Erguido em 1942, ao mesmo tempo em que era construída na França a Unidade Habitacional de Marselha –exemplo maior da "máquina de morar" preconizada por seu arquiteto, Le Corbusier–, o empreendimento do Iapi inovou ao levar moradia popular para o centro.

A questão em torno da localização dos conjuntos sociais não é menor. Ela se reproduz no modelo vigente hoje no Minha Casa, Minha Vida, cujos empreendimentos ficam em áreas apartadas da cidade das classes médias e altas.

Como assinala a obra de Bonduki e Koury, o equacionamento desses dilemas passa por uma arquitetura mais ciente de seu papel social, em contraste com propostas submetidas apenas à lógica do mercado.

VANESSA CORREA, 39, jornalista especializada em arquitetura e urbanismo, assina o blog Seres Urbanos na Folha (seresurbanos.blogfolha.uol.com.br).


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