Folha de S. Paulo


Artistas muçulmanos do Reino Unido falam sobre tensões culturais do país

As histórias que seguem se baseiam em entrevistas com quatro artistas britânicos jovens e bem-sucedidos -atores, poetas, dramaturgos ou pintores-que cresceram em comunidades muçulmanas. Três dos artistas com quem conversei nasceram no Reino Unido; a quarta, Yusra Warsama, chegou ao país ainda bebê. Todos na casa dos 30 anos, eles têm idade suficiente para recordarem o multiculturalismo relativamente descontraído dos anos 1990 e alcançaram a maioridade durante as tensões crescentes alimentadas pela agenda noticiosa dos últimos 15 anos.

A pergunta que eu queria lhes fazer era a seguinte: até que ponto eles sentem que têm a responsabilidade de usar sua voz artística para combater os estereótipos fortemente negativos enfrentados pelos jovens muçulmanos britânicos?

As respostas, naturalmente complexas e variadas, são dadas nos depoimentos abaixo.

Cada um dos entrevistados teve uma reação muito distinta aos desafios de criar arte que pareça ser honesta e relevante para o momento presente. Mas alguns temas comuns emergiram das conversas separadas com cada um dos quatro. Um deles foi a impressão -expressa pela poeta, atriz e dramaturga Warsama-que o diálogo atual com a mídia se dá em mão única. As comunidades muçulmanas britânicas são frequentemente objeto de investigações e desconfiança, mas raramente ganham o espaço para expressar o que sentem em relação a isso. "Quando as pessoas encontram uma linguagem, isso deveria significar que podem ter um diálogo robusto", disse Warsama. "É isso o que minha geração busca. Nós nos sentimos britânicos, nos sentimos parte desta sociedade. Queremos falar sobre ela."

E, quando cada um dos quatro falou sobre ela, percebeu-se que, em cada caso, o desejo de ser compreendido em meio a um mar de incompreensão foi o impulso que os levou a realizar sua vocação em primeiro lugar. Dois dos quatro entrevistados abriram mão de outras carreiras porque sentiram que não tinham outra escolha senão tentar encontrar o sentido em seu mundo. Para Avaes Mohammad, que na época do 11 de setembro era doutorando em química, escrever tornou-se uma maneira de conservar sua sanidade.

Ele aventou que as comunidades muçulmanas que conhece se sentem "assediadas" -espionadas, interrogadas, orientadas constantemente a "pôr sua casa em ordem", como se não fossem e nunca tivessem sido uma parte igual da sociedade britânica. Isso, sugeriu o artista de rua Mohammed Ali, de Birmingham, levou a uma atitude mais defensiva, um voltar-se para dentro, o isolamento e a paranoia, tanto dentro de sua comunidade quanto em relação a ela.

Se os quatro artistas estão engajados em uma coisa que é comum a todos, é reverter essa tendência e levar as comunidades a retomar seu diálogo. A arte é o canal para esse diálogo, uma maneira de solapar as polaridades e encontrar algum terreno comum. Não importa que seja um dos murais de Ali que mistura caligrafia corânica com impacto gráfico ao estilo de Banksy ou a peça "No Guts, No Heart, No Glory", de Aisha Zia, que é ambientada numa academia de boxe e conta histórias verídicas das vidas de algumas garotas de Bradford.

Nenhum dos artistas se enxerga como porta-voz -isso seria um tipo diferente de negação da individualidade. Como disse Warsama, "eu poderia escrever alguma coisa sobre ser uma garota muçulmana somali subjugada de Manchester, reprimida e determinada a libertar-se dos grilhões. É isso o que esperam de mim. Seria facílimo fazer o público se engajar. Mas eu não estaria contando a verdade. A narrativa da garota muçulmana oprimida é uma história que atrai. A mulher de Moss Side que usa véu na cabeça e virou astrofísica ou qualquer outra coisa não é uma história que atrai, porque não condiz com aquela narrativa dominante."

Mudar a narrativa é um trabalho frustrante e que às vezes requer coragem. E, como os quatro artistas concordariam, envolve malícia e surpresa.

MOHAMMED ALI, ARTISTA DE RUA E CURADOR

Mohammed Ali, 35, nasceu em Birmingham e criou o centro Hubb de artes em sua cidade natal. Suas pinturas incluem referências à caligrafia árabe e também a estilos de grafitagem ocidentais. Ele recebeu encomendas de murais em Londres, Nova York, Chicago, Toronto e muitas outras cidades. Recentemente, Ali fez uma palestra na primeira conferência TedX realizada no Vaticano, falando de liberdade religiosa.

Reprodução
Mohammed Ali
Mohammed Ali

O espaço Hubb foi aberto e era instigante, porque não havia nenhum outro lugar igual. Era comandado por artistas muçulmanos, mas era aberto a todos. E não ficava no centro de Birmingham e sim em Sparkbrook, um distrito associado a todos os tipos de negatividade. Isso foi em 2008. Levamos o centro adiante por três anos, e foi incrível. Vinha gente de todo lugar. Eu já viajei a muitos lugares, mas sou defensor de Birmingham. Esta é minha cidade. Meu pai foi sepultado aqui. Meus três filhos nasceram aqui.

A Câmara Mundial comprou compulsoriamente o prédio do Hubb. Disseram que iam demolir o prédio, mas ele continua ali. Fala-se que pode virar um centro islâmico, mas não precisamos de mais centros islâmicos. Precisamos de arte que se volte para fora. Acabei de pegar as chaves de um espaço novo que pertence à comunidade iemenita. Em seis meses vamos estar funcionando de novo.

Um problema para os muçulmanos é que os espaços sociais neste país existem em torno do álcool. As pessoas esperam que o álcool esteja presente. Se você soubesse o que eu vi no restaurante que meu pai comandava quando eu era jovem, as confusões e brigas de bêbados que tínhamos que aguentar, o vômito que eu tinha que limpar nos banheiros nas noites de sexta e sábado, saberia que para mim o álcool não é um problema apenas religioso. O álcool levou meu pai ao hospital -ele foi espancado e ferido na cabeça. Por isso eu me nego a ter encontros em bares. Vou a cafés. Mas não existe muito uma cultura de cafés aqui.

Por isso o espaço Hubb era instigante. Quando eu fazia um evento ali, ficava chateado se o público não era dividido igualmente entre brancos e asiáticos. Muitas vezes os brancos e asiáticos ficavam em lados separados, mas pelo menos estavam na mesma sala.

Sempre que faço um programa em espaços mainstream, digo às pessoas da comunidade: vão lá, reivindiquem seu lugar nesses espaços, são seus impostos que pagam por eles. A realidade triste é que, cada vez mais, não existe nenhum lugar na cidade onde as pessoas realmente convivem. Estou farto de fazer parte de uma minoria silenciosa. Na época em que meu pai veio para o país, a mentalidade imigrante dizia: "Filho, seja discreto, fique de cabeça baixa". No restaurante do meu pai, as pessoas comiam e então saíam correndo sem pagar. Ele nos mandava deixar que fossem. Meu irmão e eu nunca deixávamos. Corríamos atrás deles por quilômetros. Você tem que resistir e defender seu espaço.

Uma amiga minha tem um site em Amsterdã chamado, em holandês, Estamos Aqui Para Ficar. Há alguma coisa nessa ideia que eu gosto muito.

A arte de rua é assim. Não é a única coisa que eu faço, mas é a mídia mais perfeita para mim. Fazia sentido para mim, como muçulmano. Era um modo de exprimir que "ei, estou perdido nesta cidade, mas existo!". Gosto daquela frase de George Orwell: "Num tempo de falsidade universal, falar a verdade é um ato revolucionário". Essa é a sensação que tenho. Quando comecei, era possível contar os artistas muçulmanos neste país nos dedos de uma mão. Aqui estamos, pós-11 de setembro, tentando representar nossa identidade muçulmana britânica. Parecia ser uma coisa quase histórica.

Eu estava pintando um quadro quando aconteceu a notícia do "Charlie Hebdo". Pensei: como este quadro vai ser interpretado? Será que vão arrombar minha porta? Vão promulgar uma lei acabando com a livre expressão de artistas muçulmanos?

O quadro explorava parte do legado local que me interessava. Meu pai trabalhou na fábrica BSA (fábricas de armas pequenas de Birmingham). As pessoas daqui esquecem que a comunidade asiática do sul trabalhava nas fábricas. Na pintura, eu me debruçava sobre a história da caneta. Houve uma época em que esta cidade produzia 75% das canetas do mundo, e eu realmente gostava dessa ideia. Ela remetia à caligrafia e à tradição islâmica.

Então, quando eu estava fazendo a pintura, aconteceu o "Charlie Hebdo". De repente, canetas viraram outra coisa. Viraram uma arma que nos cutucava. Então o quadro se tornou um trabalho mais sombrio, de certo modo. No dia seguinte o governo começa a falar na inevitabilidade de a vigilância ser intensificada. Nosso FaceTime, nosso WhatsApp -essa passou a ser a prioridade do governo. Eu incorporei essa câmera de vigilância ao quadro. Foi uma espécie de obra viva.

A arte é a melhor maneira de levar as coisas a público. Quando falamos em radicalização e falamos daquelas meninas da escola Bethnal Green (que foram para a Síria), por exemplo, eu digo: dê-lhes um espaço na sociedade para se expressarem, para serem iradas e criar o que quiserem.

Não sou especialista em prevenção de radicalização, mas minha impressão é que ser ouvido seria o bastante para a maioria das pessoas.

Sempre digo que, se eu não fosse artista, poderia ter mergulhado em vários tipos de criminalidade. Agradeço à grafitagem. Deus sabe do que ela me salvou. Podemos teorizar para sempre sobre a radicalização, mas às vezes as respostas estão ali, bem à nossa frente.

AVAES MOHAMMAD, POETA E DRAMATURGO

Avaes Mohammad nasceu em Blackburn em 1978 e é autor de sete peças aclamadas. Sua poesia lhe valeu um prêmio Amnesty Media. Suas novas peças, "Hurling Rubble at the Moon" e "Hurling Rubble at the Sun", que examinam os paralelos entre o nacionalismo inglês extremo e o fundamentalismo islâmico numa cidade do norte da Inglaterra, vão estrear no Park Theatre, em Londres, em maio.

Divulgação
Avaes Mohammad
Avaes Mohammad

Escrevi meu primeiro poema, para ser apresentado, depois dos tumultos de Oldham em 2001. Eu era estudante em Manchester, completando meu bacharelado em química. Uma noite de maio, voltei para casa de um clube, completamente bêbado, e liguei a TV para ver "Newsnight". Vi um homem de terno explicando que havia um problema sério com homens asiáticos jovens no norte do país. Foi um choque enorme para mim. Me recordo de ter pensado, embriagado como estava: "Não há ninguém nesse comitê falando em nome dos jovens asiáticos, então esses homens podem falar o que quiserem e ninguém os contestará".

Mais tarde naquele mesmo verão, voltei a Manchester para começar meu doutorado. Então aconteceu o 11 de setembro e o mundo inteiro mudou, incluindo o meu. De repente, todo o mundo queria saber sobre o islã. Meus amigos começaram a questionar minha religião e onde fui criado. Antes disso, eu era um estudante como outro qualquer. Olhando para trás, vejo que comecei a escrever e fazer leituras de poesia para tentar ficar são em minha própria cabeça, imune a todas as mentiras que me cercavam.

Quando primeiro propus estas novas peças, três anos atrás, a ideia era que seria uma trilogia que analisaria a experiência muçulmana britânica dos últimos 15 anos. A primeira parte seria sobre aquele verão de 2001. E seria ambientada num carro. Quando eu tinha aquela idade, passei minha juventude em carros, com amigos, fumando maconha, ouvindo Tupac, correndo atrás de garotas e me fazendo passar por mau. Em Blackburn. Quando estávamos fazendo aquilo, ninguém queria saber mais sobre nós. Mas assim que aconteceram os tumultos e o 11 de setembro, os rapazes asiáticos foram notados dentro do grupo, pela primeira vez. No final da peça esses caras sairiam do carro.

Mas quando propus a ideia, a companhia de teatro, Red Ladder, disse que não poderia ser uma trilogia. Me disseram: "Por que você não cria uma peça análoga e analisa também os extremos da classe trabalhadora branca naquelas cidades do norte". Achei o máximo. Eu já tinha promovido muitos workshops criativos tentando aproximar essas duas comunidades. Havia verdade na ideia de que os dois extremismos eram simbióticos, apesar de serem segregados, na maioria dos casos. O que acontecia em um afetava o outro.

Assim, minhas peças são sobre duas pessoas que sentem que não pertencem mais às suas comunidades. Elas são um jovem muçulmano e um sujeito branco de classe trabalhadora. Nenhum dos dois pôde sentir que faz parte da composição mainstream do país. É dali que vem o extremismo das duas partes. Para usar uma analogia científica, se você deixa uma coisa abandonada e sozinha por tempo demais, ela estagna e gera infecção.

Fiz muita pesquisa para as duas partes da peça. Estudei as vidas dos terroristas de Leeds e de Mohammad Sidique Khan. Ele tem mais ou menos a minha idade. Ele estava engajado neste país, mas em algum momento está claro que começou a se sentir terrivelmente deslocado aqui. Seus pais praticavam um tipo de versão paquistanesa rural do islã, e isso não funcionava para ele.

Quarenta anos atrás, provavelmente havia grupos políticos em que a pessoa poderia ingressar. Partidos de trabalhadores poderiam lhe dizer que a culpa era do capitalismo global. Mas isso não acontece mais. Na realidade, as únicas pessoas que diziam a esses jovens por que suas vidas eram assim eram islâmicos radicais que pregavam vestidos de jeans e camiseta. Seus argumentos não são corretos, mas eles fazem sentido. Palestina, Cachemira, Iraque, Afeganistão -esses são conflitos pós-imperialistas, eles dizem. E, de repente, sua pobreza de oportunidades em Leeds ou Birmingham vira uma luta global. Para certos jovens, essa é uma mensagem incrivelmente poderosa.

Ironicamente, é um pouco assim também para a classe trabalhadora branca. Só que, em vez de islâmicos lhes dizendo por que estão onde estão, eles têm o BNP (Partido Nacional Britânico) ou a EDL (Liga de Defesa Inglesa) (ambos de extrema-direita). Penso, espero, que minhas peças possam iluminar essa verdade simples, mas também humanizar essas questões.

A verdade é que acho que nunca vamos chegar a um ponto em que possamos pensar em soluções enquanto não entendermos que essas pessoas fazem parte de nós, fazem parte do Reino Unido. Não é o islã sozinho que os criou. Estes são muçulmanos britânicos.

Eu estava numa trajetória profissional diferente. Ia ser cientista. Mas, desde o 11 de setembro, senti que não tinha outra opção senão escrever. Escrevo porque esta é meu país e quero torná-lo um lugar melhor.

YUSRA WARSAMA, POETA, ATRIZ E DRAMATURGA

Yusra Warsama, 30, cresceu em Manchester. Uma peça que ela co-escreveu, "Rites", sobre questões ligadas à mutilação genital feminina, está em turnê no momento. Este mês ela vai aparecer em "The Vote", de James Graham, para a emissora Channel 4 e o teatro Donmar Warehouse, uma "peça em tempo real" ambientada num local de votação.

Divulgação
Yusra Warsama
Yusra Warsama

Não digo que sou artista muçulmana, como eu não diria que sou artista negra ou artista de Manchester, mas essas são todas facetas de minha identidade. Nasci nos Emirados Árabes Unidos depois de minha família ser deslocada da Somália por uma guerra civil. Quando primeiro chegamos aqui, nos chamavam de "Pakis negros" (Paki: diminutivo pejorativo de "paquistanês"). Mesmo assim, quando eu estava na escola primária o pior que acontecia de vez em quando era alguém arrancar meu lenço da cabeça. Na maior parte do tempo, as pessoas faziam perguntas. Às vezes por desconhecimento, às vezes por curiosidade. Mas isso não me incomodava muito.

Eu me recordo que o 11 de setembro aconteceu quando eu estava na sexta série, e a mudança foi realmente chocante. Eu sempre tinha usado meu lenço de cabeça apenas levemente cobrindo a cabeça, mas depois daquilo todas nós começamos a usar o lenço à moda tradicional do hijab. Foi quase que uma declaração, acho, mas não foi algo sobre o qual tivéssemos refletido. Quando você passou sua vida enxergando algo como belo, e de repente o mundo inteiro está olhando para isso e o olhar não é necessariamente de curiosidade, mas de algo mais negativo, você começa a assumir atitude defensiva em relação ao que você ama.

O mais difícil é que ninguém mais pergunta nada. As pessoas pensam que sabem sobre o islã. Mas o que elas pensam que sabem não se parece com nada que eu já tenha visto. As pessoas dizem que todos os muçulmanos são terroristas, que somos todos responsáveis pelo terrorismo. É como dizer que, como Jimmy Saville foi pedófilo, todos os ingleses precisam provar que não são pedófilos. Uma coisa realmente sem sentido.

Eu me tornei artista não para comunicar qualquer coisa sobre minha identidade ou minha religião. Estava estudando criminologia e sociologia e sempre escrevi teatro e me interessei pelo teatro. Fui ao teatro Contact, em Manchester, e ali o diretor, John McGrath, nos deu espaço para fazer experimentos. Fiz alguns trabalhos profissionais como atriz, que ainda faço, mas o que eu gostava realmente era de escrever. Nunca senti que tivesse a responsabilidade de escrever sobre muçulmanos britânicos. Mas acho que eu queria mostrar o lado bom dos somalis e dos muçulmanos, porque está claro que o mundo não nos enxerga assim.

Acho que fui para o palco porque eu queria genuinamente falar com as pessoas. Hoje, prefiro fazer isso numa peça, não nos trabalhos de palavra falada que crio. Nas sessões de leitura de poesia, acho a parte de ego um pouco incômoda. Mas, no que ela tem de melhor, a poesia de performance é "e se? Que tal?". Ela visa iniciar uma conversa. As pessoas têm sede disso.

Não quero ser coagida a ser porta-voz de qualquer pessoa a não ser eu mesma. Sabe, houve um período em que a ativista holandesa Ayaan Hirsi Ali ganhou destaque enorme na mídia. As pessoas me telefonavam, esperando que eu fosse como ela, pelo fato de também ser somali. Eu tinha 22 anos, acabava de ter meu primeiro filho, morava em Manchester. Não quero representar o papel de outra pessoa.

Nos anos 1990 tive a oportunidade de crescer desfrutando de liberdade de pensamento e espaço para pensar. Hoje há um sentimento tão negativo em relação ao islã que os jovens muçulmanos não têm essa oportunidade. Eles não podem ser um misto de coisas -precisam ser ou nós ou eles. Por que é preciso o tempo todo perguntar a uma pessoa de 15 anos "até que ponto você é britânica?". Ou "até que ponto é muçulmana?". As pessoas precisam de espaço para respirar e expressar o que sentem. Dizem a você que você pode ser livre, mas, se você optar por se expressar de determinado modo, mesmo que seja ligeiramente perigoso ou errado, não há como ter um diálogo sobre isso.

É isso o que causa a frustração e o sentimento de alienação. É como quando começou a guerra do Iraque, em 2003. Eu tinha 19 anos e não entendia a guerra, de modo algum. Aquilo realmente me deixou revoltada. Eu não conseguia vê-lo como outra coisa senão um ataque contra o islã. O que mais podia ser? Estava convencida de que iam atacar Meca. Eu me lembro de ter pensado que eu iria a Meca e seria um escudo humano. É claro que é uma ideia ridícula, mas foi assim que me senti.

Me recordo da intensidade da frustração. Eu estava acostumada a que as instituições da sociedade britânica fizessem algum sentido, que houvesse alguma claridade de pensamento, mas lá estava o governo em que lhe pediam que você confiasse, e estava aleatoriamente perpetuando o ódio contra você. Isso é assustador, porque a quem você pode recorrer?

Para mim, um lugar ao qual recorrer é a arte ou o teatro. Estou na peça "The Vote", de James Graham, que está no Donmar Warehouse e também vai estar na televisão na noite da eleição. Judi Dench também está na peça, o que me emociona. Sendo muçulmana, eu só devo adorar a Deus, mas quando se trata de Judi Dench sou obrigada a fazer uma pequena exceção.

AISHA ZIA, ESCRITORA

Aisha Zia tem 34 anos. Foi editora de imagens do "Financial Times" por sete anos antes de tornar-se escritora. Sua segunda peça -No Guts, No Heart, No Glory, sobre boxeadoras muçulmanas-ganhou o prêmio Scotsman Fringe First em Edimburgo em 2014. Encenada em academias de boxe reais, seu elenco é composto de cinco jovens muçulmanas de origem paquistanesa de Bradford, incluindo Saira Tabasum, campeã de boxe das universidades britânicas.

Divulgação
No Guts, No Heart, No Glory
Elenco da peça "No Guts, No Heart, No Glory", de Aisha Zia

Sua pergunta é: "Eu sinto que tenho a responsabilidade de fazer arte politizada porque nasci no Reino Unido e sou de origem muçulmana?". A resposta simples é "não". O fato é que nunca senti a necessidade de responder essas perguntas. Você não diria "ela é dramaturga cristã" ou "artista católica". Minha peça "No Guts, No Heart, No Glory", não é sobre ser paquistanesa, ser muçulmana ou mesmo ser pugilista. É sobre ser a melhor versão possível de você mesma.

Isto dito, nós -a companhia de teatro Common Wealth-quisemos fazer a peça porque sentimos que estávamos sendo alvos das imagens da comunidade muçulmana difundidas pela mídia e queríamos combater isso. Mas não é uma coisa muçulmana, é uma coisa social. Por acaso sou artista muçulmana de origem paquistanesa, mas não acho que essa estereotipagem negativa seja um problema meu, acho que é um problema de nós todos. Existe muito de preto e branco em nossas ideias sobre os muçulmanos britânicos. Há uma nítida falta de matizes ou de vibração.

Não foi fácil crescer como garota muçulmana em Peterborough; não havia muitas de nós. Eu entendi desde muito cedo que seria duas vezes mais difícil para mim conquistar qualquer coisa que eu quisesse, porque teria que lutar mais por ela. Quando eu tinha 16 anos, era revoltada porque tinha amigas inglesas e elas simplesmente não entendiam por que eu não era autorizada a sair numa sexta à noite ou ir a festas.

Decidi que não continuaria a tentar explicar; eu faria algo diferente. Fiquei em casa, li muito e tentei me tornar o mais inteligente possível. Eu precisava me empoderar. Eu olhava para aquelas garotas e pensava "você não fazem ideia de como sua vida é fácil".

Uma das coisas que eu queria explorar na peça era a diferença entre ser uma garota inglesa e uma garota muçulmana. No final, a resposta que descobri é que não havia tanta diferença assim, tirando aquelas que nós mesmas impomos.

O roteiro saiu das entrevistas com o elenco em Bradford e de minha própria experiência de vida, das minhas recordações de quando eu tinha 16 anos e alguns dos problemas que vivi. Conhecer as garotas foi altamente instigante. Acho que o importante de Bradford é que a comunidade muçulmana dali é incrivelmente diversa. A percepção dominante é que existem apenas dois tipos de muçulmanos: os extremistas e os liberais. Mas é óbvio que existem tantas vozes distintas quanto em qualquer comunidade.

Uma das inspirações da peça foi uma senhora maravilhosa que conhecemos, Alaa al-Abasi. Ela tem 11 filhos, usa burca e pratica boxe na academia para ficar em forma.

A peça é uma coisa muito visceral. Nós a apresentamos em Edimburgo, depois em Bradford, depois em Manchester, em Moss Side, na academia do Corpo de Bombeiros. Quisemos levar a peça para onde as pessoas estão, em vez de as pessoas virem a nós. Adoro assistir a cada apresentação porque adoro observar a plateia.

As famílias das garotas vêm sendo realmente positivas em relação à participação de suas filhas na peça. É claro que tivemos que conseguir a autorização delas. Não queríamos fazer nada com que elas não se sentissem à vontade.

Não quisemos incluir namorados na história, principalmente porque isso não seria fiel à realidade. Os pais são em sua maioria de minha idade, minha geração, muito interessados em ver uma versão diferente da comunidade ser retratada. Nem todas as meninas têm pais que querem mandar suas filhas ao Paquistão para se casarem.

Foi importante passar tempo -uns seis meses-com as meninas, para ouvir suas vozes. Elas são maravilhosas. Nós as escolhemos porque todas estavam prestes a virar adultas. Tínhamos Saira, que é boxeadora na vida real, com sua energia espantosa, e ela ensinou as outras meninas.

Foi incrivelmente forte. Uma das coisas interessantes para mim foi ver muitas dessas meninas sendo muçulmanas conscientemente, porque queriam ser. Elas são garotas modernas, elas oram cinco vezes por dia, mas ninguém as obriga -isso nasce delas mesmas. É uma questão de liberdade de escolha.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: