Folha de S. Paulo


Ponto Crítico - Música - Em sintonia com o mundo de Chopin

O público da música erudita no Brasil, por vezes, pode parecer torcida de time pequeno. Sempre há uma "turma do amendoim" disposta a "cornetar" os ídolos, ainda que a fase seja boa.

Unanimidade positiva é uma só –e, contrariando Nelson Rodrigues, está muito longe de ser burra. Quando o assunto é Nelson Freire, vaias e vuvuzelas dão lugar aos mais calorosos aplausos –mesmo quando ele sobe ao palco, antes da apresentação, sem ter tocado nem sequer uma nota. Pode-se dizer que o pianista mineiro de 70 anos entra em campo com o jogo já ganho.

Para perplexidade dos marqueteiros, tal reputação foi construída não com uma busca sôfrega das câmeras de televisão ou com o uso agressivo das redes sociais, mas à la Greta Garbo, evitando conscientemente os holofotes –como testemunha, por exemplo, seu mais recente álbum, dedicado a Frédéric Chopin (1810-49).

Ao entrar na Philharmonie, de Colônia, para gravar o CD "Nelson Freire - Chopin - Piano Concerto No.2" [Universal, R$ 29,90] com a sensacional Orquestra Gürzenich, sob a batuta do jovem francês Lionel Bringuier, Freire vivia problemas de saúde que o forçaram a cancelar sua agenda de concertos no primeiro semestre de 2013.

Outros artistas fariam disso um exemplo de redenção, de "volta por cima", dando diversas entrevistas regadas a lágrimas e voz embargada. Com Nelson Freire, não tem nada disso. Ele jamais mencionou o assunto em público. A música que fale por si.

E como fala! Aos 28 anos, Bringuier pertence ao seleto grupo de regentes (que inclui também os consagrados Riccardo Chailly e Valery Gergiev) com os quais o pianista brasileiro tem uma química especial. Freire e ele já haviam feito um registro ao vivo do concerto de Chopin em DVD e Blu-ray, em 2010, e aqui, beneficiando-se das facilidades da engenharia de som, a dupla consolida uma interpretação idiomática e encantadora da obra-prima do autor polonês.

Nelson parece possuir uma chave especial para o universo chopiniano, que talvez passe por uma afinidade de temperamento entre ele e o compositor.

Não custa lembrar que, na Paris da metade do século 19, enquanto Franz Liszt (1811-86) era o virtuose de sonoridade avassaladora que suscitava no público o tipo de reação à beira da histeria à qual nos habituamos na música pop dos séculos 20 e 21, Chopin funcionava quase como seu antípoda.

A arte do pianista polonês florescia não nas grandes salas de concerto, perante uma ruidosa plateia, mas sim no intimismo aristocrático dos salões, em que uma reduzida audiência se reunia em torno ao teclado para ouvir miniaturas que lhes eram praticamente sussurradas pelo piano.

Freire complementa o disco com algumas dessas miniaturas –que, de acordo com as exigências da partitura, podem ser sussurradas, cantadas no melhor estilo operístico italiano ou até mesmo atingir o registro de um grito lacerante ou de bravura, porém sem jamais descambar para excessos de sentimentalismo. Assim, comandando uma paleta de cores variada e sedutora, ele confere leveza ao "Improviso nº 3" e lirismo à "Berceuse" (um daqueles momentos em que, a exemplo do segundo movimento do concerto para piano, o pianista induz o ouvinte a um transe que faz o tempo parar), e dá a impressão de falar polonês como língua materna nas "Mazurkas Op. 50" e na "Polonaise Heroica".

Porém, o item de destaque é a "Balada nº 4", que teria sido inspirada, em seu tempo, por poemas de Adam Mickiewicz (1798-1855), e inspirou, no nosso, o romance "Presto con Fuoco" (1995), de Roberto Cotroneo. Freire tinha apenas 12 anos quando gravou pela primeira vez essa música que parece aspirar à literatura.

Ao revisitá-la, décadas depois, soa como se não tivesse perdido o entusiasmo juvenil por tocá-la, porém a tempera com o juízo da maturidade.

Se as baladas de Chopin consistem na mais notável síntese de narrativa e poesia produzida pela música para piano do século 19, elas encontraram em Nelson Freire, no século 21, um de seus mais inspirados poetas-narradores.

IRINEU FRANCO PERPETUO, 43, é jornalista e tradutor.


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