Folha de S. Paulo


O velho e o sexo: a poesia é a origem e o fim no novo livro de Nuno Ramos

RESUMO "Sermões", novo livro de Nuno Ramos, parte das obsessões sexuais de um velho professor de filosofia para narrar sua crise de identidade e seu declínio. Longo poema dividido em sete partes se revela, paradoxalmente, como o livro mais próximo do romance dentro da obra do artista plástico e escritor.

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A cada nova entrega literária, Nuno Ramos confunde mais a audiência. Não é diferente com o recém lançado "Sermões" [Iluminuras, 208 págs., R$ 48]: ao contrário daquilo que seu título indica, independe da tradição retórica longamente vinculada à exegese religiosa e ao padre Vieira. Ao final desse livro libidinoso há padres, porém a exposição oral a que se propõem é de outra ordem, não aprovada pela Santa Sé.

A promiscuidade temática tem início pela forma, ou pela matéria informe ao qual o autor habituou seus leitores: em contraste com a lucidez do pensamento, o texto se retorce qual serpente num labirinto que emboca em novas saídas.

Linha a linha, esguicho a esguicho, o protagonista goza pelo falo e pela boca, reafirmando simultaneamente "cogito ergo sum" e ejaculo logo existo.

De difícil apreensão à primeira leitura, a tênue linha narrativa (somente explicitada em nota final) é esgarçada pelo discurso incessante pontuado por indicações de bruscas mudanças de cenários, de imagens e de tons.

O surrealismo de cartão-postal se impõe ("Em nossas vértebras/ corre o suco dos despertos/ cavalos/ insones/ boiando no lago"), antecipado pela paisagem de Ouro Preto e a igreja do Rosário.

Ali, um "professor de filosofia faz sexo debaixo de uma cúpula e sobre um tapete com a imagem de um tigre atacando ovelhas", explica a nota. O flagrante predatório dessa cena de caça é um preâmbulo ao desfile animalesco que oscilará, ao longo de toda a extensão do poema, entre o elemento kitsch e o sublime esbravejar em linguagem alucinada do filósofo-poeta:

"Somos tigres devorando/ em mordidas lentas/ cervos tenros nessa hora". Ovelhas, cervos, lobos, carcarás sedentos, polvos, um hamster, um peixinho, todos querem a cona quente da carneira.

Essa sedutora terceira pessoa é algo que Ramos arrasta, salvo engano, desde "Ó" (Iluminuras, 2008), adotando-a para registrar, naquele livro, as metamorfoses de um corpo único, o dele e o nosso, à materialidade de nossa íntima existência comum (penso em textos como "Manchas na pele, linguagem" ou "Túmulos").

Essa tática de aproximação, assim como as incorporações animais, é inesperada, insinuando-se sem aviso em meio ao discurso em primeira pessoa do singular:

"Elas respiram/ como cantoras/ são cantoras nessa hora/ respiram/ muito mais que nós./ Uma cantora/ deixa o ar passar, arrastando/ amídalas e manadas/ badalos de bronze/ búfalos, risadas/ para a corrente eólica./ Que horas são?, pergunta/ quando se recupera/v /amos embora?/ põe a calcinha/ e aí não respira mais."

O resultado, no caso de "Sermões", adquire em certas passagens a locução de um cômico messianismo de botequim, de camaradagem entre chapas, o elogio da paudurescência em tempos contrafeitos ao livre voo do caralho.

Nesse sentido, o poema canta as últimas ereções de um tiranossauro à beira da extinção –e, de outro modo seria impossível, o canto se confunde a maior parte do tempo com um urro, com o esganamento da glande, agarrando-se à grossura do discurso pornô que também irrompe entre frases as mais altaneiras, em uma desabalada e vulgar despedida do mundo.

Da abertura ("Tenda") à perda da mãe na segunda parte, "(Parêntese. Moenda. Minha mãe nascendo.)", movimentos se invertem: da conquista do corpo da mulher amada –como se fosse um país a ser invadido– à morte materna uma cisão se interpõe.

NÊNIA

Da mesma forma que "Monodrama" (7Letras, 2009), de Carlito Azevedo, mencionado na já referida nota, "Sermões" se anuncia como indesejável nênia em uma época em que a morte "tornou-se cada vez mais politizada e medicalizada mas caiu fora da linguagem", como afirmou o filósofo britânico Simon Critchley, sendo expulsa dos rituais domésticos e internada em hospitais, fora de nossas vistas e lágrimas.

Tanto em um longo poema como em outro, devolve-se o incômodo caixão à sala de casa ("Um boneco maquiado/ recebe minha gratidão./ Acredito nele. Não que pareça/ vivo/ não parece/ parece o que é, de fato/ um defunto pintado/ ["¦] Obrigado por me fazer rir").

Banido do sexo alheio, relegado à masturbação compulsiva, o professor de filosofia vai a Londres, onde divaga em Heathrow, entrando em um transe comum aos habitantes temporários dos corredores de aeroportos –endoidecidos de "jet lag" e outras coisinhas mais, eternos parentes do profeta apocalíptico da praça, do pregador alucinado da esquina, Bíblia na mão, do maluco solitário desejoso de papo e amor ("Todos/ sumiram, até o tapete c/ élebre, teatro/ de tigres e carneiras/ enrolado debaixo da lareira.").

Tomado de luto sem ser abandonado pelo tesão, o protagonista muda-se para um prédio modernista do centro de São Paulo, onde um autorretrato de Rembrandt na velhice, recortado do fascículo nº 34 da coleção "Gênios da Pintura" o questiona da parede: "Vai querer fugir? Vai querer voltar? Vai pular pela janela?".

É aqui o ponto em que a dicção eufônica que percorre o poema desde o princípio adquire os contornos de sermão propriamente dito, o instante em que o poeta desabrocha seu discurso enumerativo, tornando-se um Hamlet que, abraçado ao próprio pau, sobe no banquinho do profeta e abre a torneira da verborreia.

Wikimedia Commons
autorretrato de Rembrandt Foto:
Autorretrato de Rembrandt de 1658.

O aspecto desconjuntado da narrativa prova ser apenas superficial, ganhando em sentido e contundência –e não é de todo inválido afirmar que, se "Ó", um livro de prosa, é o mais poético de Nuno Ramos, certamente o poema longo "Sermões" é o mais narrativo e aquele que, em toda sua obra, mais se aproxima de um romance.

Montado em uma motocicleta, o professor de filosofia baixa até o litoral, e o livro sobe a seu ponto mais alto –os "Sermões", a quarta de sete partes em que se divide.

O professor está velho (equivoca-se, chamando a moto de "baique", confunde terminologias, tempo e espaço), e transpõe o imaginário de Ouro Preto, "da cidade barroca miserável brasileira", para o apoteótico engarrafamento rumo a Praia Grande ("A língua preta do asfalto vai lambendo/ as aves mortas e os cães meio dormindo/ meio ladrando. O asfalto derretido pela estrela/ prende o pneu. Temperaturas/ insuportavelmente altas/ causaram intensa migração de aves./ F/ amílias se abraçando/ dão adeus à luz tranquila/ e cumprimentam a eternidade.").

Aguarda o anjo e o cometa que destruirão tudo, anunciando-os de cima do banquinho. Encara por meio dos sermões a própria cara, a solidão, a nudez, a mudez, a invisibilidade, a descendência. O esporrar do início, confundindo o pau com o umbigo, mostra-se tão-somente os prolegômenos dessa pulsão de morte, as meditações de um corpo que busca o esvaziamento através da ejaculação final, escrevendo para "apagar o próprio nome" ao modo de Bataille, às vésperas da entropia.

Ao final, "Asas de um anjo prendem carro alegórico debaixo de viaduto"; o anjo, como as sereias de Ulisses, mostra-se nada mais do que outro animal em sua carnalidade ("Venha conosco, disseram, você/ pode foder/ nossa carne de anjo/ sempre que quiser./ Somos homem, mulher e bicho"), e o cometa não passa de um busão da Viação Cometa que devolve o moribundo à igreja do Rosário, onde morre sob a cúpula, mesmo local de suas fantasias sexuais.

"Não ouço cânticos/ nem sinos/ mas sacanagem/ com criancinhas/por toda parte, dobras/ douradas/ de bundas sem fralda/ bochechas bombadas/ sugando leite, hóstia/ e pinto de padre. Ave."). O sagrado leva um belo cacete do sacrílego. A consciência do protagonista se dissipa no pansexualismo.

"Sermões" é um livro excessivo em seu transbordamento linguístico e muito necessário ao panorama das coisas.

Aparentada ao pragmático e ao esquema, às imposições do que está em voga, a literatura brasileira atual, assim como a prosa em geral (a literatura do eu, o romance redondo, a ficção com personagens e linguagem hipercorrigidos com aparência de tradução bem executada, bem preparada, revisada e editada; o conto de oficina; a crônica de celebridade; a crônica-denúncia; o colunismo de favor e a favor; o colunismo cultural exaurido) necessita urgentemente de generosas transfusões de impurezas, de sujeiras vocabulares, além de doses de comprometimento artístico –com a linguagem, com o descompromisso comercial, com a coragem de criar as próprias regras– com o fazer literário.

Por meio de sua viagem lírica em torno do próprio caralho, Nuno Ramos atesta que a poesia é a fonte reguladora entre o sexo e a morte e a origem e o final do universo.

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Nota: O artista plástico e escritor Nuno Ramos, 55, é entrevistado nesta terça (28), às 19h, na Sabatina Folha. O evento, que ocorre em São Paulo, no Museu da Imagem e do Som (av. Europa, 158), é aberto ao público e tem entrada franca. Participam da sabatina o editor da "Ilustríssima", Marcos Augusto Gonçalves, o repórter especial Mario Cesar Carvalho e o repórter de artes visuais da "Ilustrada", Silas Martí.

JOCA REINERS TERRON, 47, é escritor, tradutor e editor, autor de "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das- Neves" (Companhia das Letras).


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