Folha de S. Paulo


Leia a crônica "Tanques cercavam o Catete", de Hélio Pólvora

SOBRE O TEXTO Esta crônica integra a coletânea "Como Morrem os Nossos Escritores", organizada por Rosel Soares, que trabalhava na reunião de escritos, publicados e inéditos, quando o autor morreu, há um mês. O lançamento, pela Casarão do Verbo, está previsto para a primeira quinzena de junho.

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Era baiano e bacharel. Creio que já disse tudo. O nome pouco importa. Natural aqui do Recôncavo, simpático, discreto, com um falso ar humilde –e muito insinuante. Sabia abordar, sugerir, pleitear. Especialista em adular, cair em boas graças. Sempre achei que iria longe, como de fato foi, depois de saltar sobre um dos tanques de guerra que bloqueavam o Palácio do Catete e tornar-se procurador da República.

Estava de paletó e gravata, o futuro procurador, e tinha a dignidade funcional de um magistrado. O presidente Café Filho, que sucedera a Getúlio Vargas, após o suicídio deste em 24 de agosto de 1954, estava somente há 14 meses no poder. A crise persistia, a República do Galeão continuava exigente, o marechal Lott mal conseguia controlar o brioso Exército. O jornalista Carlos Lacerda vociferava contra a posse da dupla Juscelino-Jango, da chapa PSD-PTB, vitoriosa nas urnas. Pressionado, Café relutava em dar-lhes posse ou declará-los impossibilitados de governar. De nada lhe valia ter formado o breve governo de tampão com militares, empresários e políticos golpistas.

Mariana Poppovic
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Ilustração de Mariana Poppovic

Os militares perderam a paciência e cercaram o Catete. Ninguém passava. Era praça de guerra. Tanques por todos os lados. Café estava prestes a ser arrancado da cadeira presidencial e hospitalizado à força. Foi quando um cavalheiro bem trajado, cabeleira ondulada, sapatos brunidos, rompeu as fileiras de soldados, escapou de ser agarrado, roçou baionetas ensarilhadas, subiu destramente num tanque e aterrissou do outro lado, quase dentro do palácio.

Era ele, o baiano de cativantes e insistentes modos suaves. Tinha motivos para a investida solitária. Numa gaveta da escrivaninha do ainda presidente Café Filho, ou talvez sobre a tampa da mesa, estava o decreto de nomeação, que o presidente prometia, prometia e não assinava. Assinou nas vascas da agonia, naqueles sufocantes segundos antes do afastamento e da queda. O baiano saiu nomeado, o papel na mão serviu-lhe de salvo-conduto para pular outra vez sobre o tanque e varar a soldadesca perplexa.

Foi-se Café Filho, veio Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, a 8 de novembro de 1955. E brilhou no céu escuro da pátria mais uma estrela –a do novo procurador.

A nomeação, arrancada, a bem dizer, com o ímpeto de um pracinha a escalar o monte Castelo, ficou como o ato mais heroico do meu amigo procurador. Houve outro –mas este acabou em galhofa.

Quando assessor do governador Negrão de Lima, no Palácio Guanabara, para onde, informo com gratidão, ele me levou, usou de toda a sua influência untuosa para impor a Lei do Silêncio. Bateu-se, na sua habitual diplomacia, contra lojas de discos, discotecas, clubes, festas, saraus musicais, marchas, passeatas, bandas, carros de som em estrondosa propaganda política ou comercia, motos com descarga aberta. Deve datar dessa época a palavra decibéis, no plural, sinônimo de abuso auditivo. Votada afinal, e em vigor, a Lei do Silêncio virou motivo de deboche. O meu amigo sofreu calado, mas já então estava procurador. Nada como um supersalário e um cargo fulgurante para cicatrizar feridas. É um bálsamo.

Essa tal de Lei do Silêncio não pegou no Rio e não pegará em lugar nenhum. O Brasil gosta de espetáculo ruidoso, nas tristezas e nas esbórnias. É festivo, é popular, falta-lhe temperamento para hibernar.

HÉLIO PÓLVORA (1928-2015), foi jornalista, crítico literário e escritor. Será o homenageado do 5º Festival Nacional do Conto, em maio.

MARIANA POPPOVIC, 27, é artista plástica.


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