Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Tríplice legado

Era verão. Eu gravava no estúdio sinfônico da Odeon o disco que marcaria de forma definitiva minha aproximação com a música popular. O repertório, escolhido a dedo com Maurício Quadrio, meu produtor na época, reunia originalmente músicas de salão produzidas entre o final do século 19 e o início do século 20.

Entre os autores, figurava Chiquinha Gonzaga, de quem gulosamente eu havia escolhido quatro entre as seis peças para piano até então disponíveis na Biblioteca Nacional. Naquele final de manhã, eu acabava de registrar minha interpretação para a primeira delas e, na sequência, gravaria "Hip!!!", uma deliciosa polca-galope, quando adentrou o "aquário" o saxofonista Victor Assis Brasil, que também era artista de Maurício.

No primeiro intervalo, Maurício desceu com Victor os degraus que separavam a equipe técnica da sala de gravação e nos apresentou. A empatia, mútua, foi imediata.

Acervo pessoal
Partitura de Chiquinha Gonzaga com anotações de Victor Assis Brasil - Ilustrissima - Arquivo Aberto ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Partitura de Chiquinha Gonzaga com anotações de Victor Assis Brasil

Apesar de me considerar até hoje uma pessoa tímida, no minuto seguinte, eu já estava tomando a opinião dele sobre os impasses que a polca de Chiquinha me apresentava. Victor então me disse que tocasse um pouco e logo, como se tivéssemos uma intimidade que verdadeiramente não podíamos ter ainda, pediu um lápis e saiu a deitar anotações sobre a partitura: sugestões de andamento –mais lento aqui, mais rápido ali– e, como grande músico de jazz que era, sinalizações de momentos que considerava propícios para eu tomar liberdades quanto à partitura.

Ficamos tão visivelmente encantados um com o outro que Maurício propôs que almoçássemos juntos. E lá fomos, os três. A conversa, regada a duas caipirinhas, fluiu animada. Antes que pedíssemos a terceira, Maurício tratou de dar um freio na história: "A Clara tem que voltar pro estúdio e gravar. Não dá pra passarmos a tarde bebendo e conversando." Ao que Victor refutou: "Que nada! A gravação vai sair muito melhor!".

E não é que saiu? A presença de Victor revelou-se tão inspiradora para mim naquele momento de transição que Maurício passou a convocá-lo para as sessões de gravação que, de imediato, envolviam duas outras peças de Chiquinha.

Foi no decorrer dessas três gravações que a música de Chiquinha me arrebatou e decidi mudar o rumo do disco para que ela reinasse absoluta nos dois lados do vinil.

O encontro com o Victor deixou claro que um novo caminho se abria para mim. E uma outra ideia, improvável para a época, invadiu meus pensamentos: formar um duo clássico de piano e sax.

Apesar de Victor ser um jazzista por excelência, eu, que não gosto de nada fácil, queria (claro!) que meu parceiro no duo fosse ele. Tanto Maurício quanto Victor compraram, de cara, a ideia.

Acervo pessoal
João Carlos Assis e Clara Sverner - Ilustrissima - Arquivo Aberto ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
João Carlos Assis, irmão gêmeo de Victor, e Clara Sverner
Acervo pessoal
Paulo Moura e Clara Sverner - Ilustrissima - Arquivo Aberto ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Ao sax, Paulo Moura formou duo com a pianista Clara Sverner

Começamos a pesquisar repertório, escasso para a formação. E a coisa foi indo de vento em popa: Marlos Nobre escreveu especialmente pra nós "Desafio", e Gilberto de Mendes, "Parque Balneário". Poucos meses após o lançamento de meu primeiro LP de Chiquinha, porém, Victor caiu doente. Ainda assim, ao longo de sete meses, até a véspera de sua morte, quando nos falamos pela última vez, acalentamos nosso sonho.

E eis que o destino nos prega peças. O sonho, tal qual o sonhamos juntos, viria a se realizar (e se estender por mais de duas décadas) com o monumental Paulo Moura –o primeiro professor que Victor teve em vida, tardiamente, aos 21. E se desdobraria na figura de seu irmão gêmeo, o pianista João Carlos Assis Brasil, com quem formei outro duo profícuo.

Os duos se interligam de maneira peculiar: quando eu e Paulo estávamos escolhendo o repertório de nosso primeiro disco, em 1982, decidimos homenagear Victor incluindo uma música de sua autoria. Foi quando procurei João, que andava triste e afastado da música. A bela "Berceuse", de Victor Assis Brasil, só chegaria às nossas mãos em 1984, quando a gravamos em cena aberta na Sala Cecília Meireles para o LP "Encontro".

Resumo da ópera: de forma mais ou menos oblíqua, meu encontro com Victor, que musicalmente jamais chegaria a se realizar, serviria de gatilho para a minha aproximação com três figuras fundamentais na minha trajetória: Chiquinha, Paulo e João.

CLARA SVERNER, 78, é pianista; sua discografia conta mais de 25 títulos, entre os quais a "Íntegra das Sonatas de Mozart (2009) e "Chopin por Clara Sverner" (2011), álbum indicado ao Grammy Latino na categoria de melhor disco erudito.


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