Folha de S. Paulo


Sobre duas pias de Gober

RESUMO A obra de Robert Gober lança mão de elementos realistas e situações caseiras. Mas os elementos familiares e realistas são dispostos de um modo inusual, o que faz lembrar a poética do surrealista René Magritte. Neste texto, o autor se detém na análise das pias que se repetem na obra do artista norte-americano.

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As obras de Robert Gober –em grande parte instalações– contêm elementos familiares, mas arranjados de tal forma que a disposição final é inusitada. São mesmo elementos realistas, como a escultura de uma perna cortada que sai reta de uma parede –com direito a calça, pele, pelos, meia e sapato.

Em outros casos os elementos são inteiramente reais: porta, parede, papel de parede, cama, pia, grama, vela etc. Elementos familiares e realistas dispostos de um modo inusual, que faz lembrar a poética de René Magritte.

E Gober é um magrittiano. Transpõe para instalações algo daquilo que em Magritte se dá em pinturas. A perna que salta da parede, em tudo realista, se assemelha à locomotiva que sai súbito de uma lareira em "O Tempo Paralisado", de 1938, de Magritte.

É verdade, a perna tem dimensões humanas, enquanto a locomotiva de Magritte é miniaturizada. Mas a semelhança entre as obras está no sair repentino de algo inesperado de um determinado lugar, parede ou lareira. A miniaturização ou agigantamento das coisas em Magritte também ocorre em Gober, como numa pequena casa ou num charuto com o comprimento do corpo humano.

Há uma tipologia em Magritte dos modos pelos quais as coisas familiares se conjugam de modo inusual. Não é o caso de descrevê-la aqui. Nem tampouco uma tipologia de Gober, um americano nascido em 1954. Seria uma tarefa longa e que talvez só importasse se incluídos outros artistas em que os elementos são familiares, e sua conjugação, inusual. O que é específico em Gober importa mais a este pequeno texto.

Seus elementos familiares são, na maioria dos casos, caseiros. Trabalha com o universo das coisas numa casa. E com o habitante da casa: o corpo humano. A tensão entre o familiar e o inusual em Gober se especifica numa tensão entre o caseiro e o estranho e entre as coisas da casa e o corpo.

Desses elementos caseiros, um dos mais empregados por Gober é a pia ou o tanque de lavar roupa.

Pias dispostas solitariamente ou em duplas, ou grupos, ganham estranheza por suas formas e pela posição em que são postas numa parede. A parte que menos se nota cotidianamente numa pia, a forma exterior de sua bacia, surge com força volumétrica insuspeitada.

Não se trata de "ready-made", mas das relações entre áspero e liso, horizontais e verticais, cheios e vazios, que uma boa escultura abstrata também carrega. Embora ainda sejam pias e, no lugar onde as torneiras seriam atarraxadas, sobrem, junto à parede, dois orifícios algo enigmáticos, como se fossem dois olhos.

LÁPIDES
Em "Duas Pias Parcialmente Enterradas", obra de 1986-1987 sobre a qual me deterei um tanto mais, apenas as partes verticais das pias aparecem, surgindo da grama que cobre as partes das bacias. Possuem o aspecto de lápides. Que os dois furos sejam como dois olhos me parece agora uma interpretação bem razoável. Lembram os olhos diminutos e quase sempre redondos de Klee, como em "Pintura e Fogo", de 1940.

Nessa obra, o jogo entre caseiro e estranho e entre casa e corpo se modifica em relação às outras obras de Gober. As duas pias perdem as feições domésticas, mesmo que tais feições, em outras obras, também revelem pias enigmáticas.

Se, em outras obras de Gober, caseiro e estranho se tensionam sem a perda da fisionomia original das partes –mesmo que o corpo surja mutilado e as coisas da casa arrancadas umas das outras–, em "Duas Pias Parcialmente Enterradas", as pias se transfiguram em lápides, e os corpos, pode-se supor, repousam inteiros sob a terra.

Metade da pia passa a ser uma lápide inteira. E, se há corpos sob as lápides, não há por que imaginá-los mutilados como nas outras obras. A casa, em Gober, com pedaços de corpos e pedaços da casa deslocados, decepados etc. corresponde a uma violência que invadiu os lares. Não como violência privada (embora também), mas como uma violência do mundo que não é mais separável do habitar privado, sossegado e íntimo.

Mas, se essas partes deixam de ser partes –se um pedaço de pia se transfigura em lápide–, é porque a violência cessou e uma forma de paz surge, ainda que enlutada.

Há varias montagens de "Duas Pias Parcialmente Enterradas". A da retrospectiva de Gober, no MoMA, encerrada em janeiro, me parece a mais bem-sucedida.

Num cercado retangular de madeira coberto de grama, as duas lápides se assentam fora do museu. O gramado com as lápides é visto pelo vidro de uma das salas de exposição, suspenso sobre a calçada na altura do segundo andar dos prédios do outro lado da rua. Está fora da sala e dos objetos caseiros nela dispostos. Não se trata, assim, mais da casa, ou mesmo do familiar. Nem do corpo, a não ser se enterrado. Como se na morte houvesse paz e, na vida, violência, "Duas Pias Parcialmente Enterradas" é um "memento mori" na obra de Gober.

As duas lápides possuem um aspecto simples, sem qualquer outro elemento de um túmulo. São arredondadas como outras e, importante, formam um par. Houvesse apenas uma pia ou mais de duas, como em outras obras de Gober, se perderia esse emparelhamento tão comum a lápides de pessoas que em vida foram um par.

Um exemplo assemelhado à obra de Gober são as lápides postas lado a lado de Van Gogh e seu irmão Theo. O espelhamento daí resultante diz de uma solidariedade que houve. O "memento mori" se intensifica, assim, ao lembrar-se também do solidário.

Muitas vezes o "memento mori" se associa ao tema das "vanitas", das vaidades da vida que nos fazem esquecer que ela é finita e que o valor das coisas é outro do que das coisas vãs.

Na obra de Gober, é também a violência que surge como algo a largar para o viver pleno. E, dado que sua obra não é nenhuma apologia da violência, mas antes sua crítica seca, precisa, "Duas Pias Parcialmente Enterradas" é um contraponto em que as tensões entre o corpo e a casa, o caseiro e o estranho encontram uma harmonia. A bacia da pia, lugar da água e da purificação, se encontra com a terra e sua perenidade. A pia vira lápide; a água vira terra.

O tema de "Duas Pias Parcialmente Enterradas", se bem interpretei, não é de todo novo.

No quadro de Poussin, "Et in Arcadia Ego" também é uma lápide que se presta a um "memento mori", no lugar das tradicionais caveiras e outros objetos referidos à finitude da vida. Panofsky interpreta o quadro de Poussin com fôlego e erudição que não desejo resumir, no ensaio "'Et in Arcadia Ego': Poussin e a Tradição Elegíaca em Significado nas Artes Visuais" (Perspectiva, 1979).

Basicamente, o "memento mori" diante da lápide não é mais assustador e moralizante. Essa transformação, em tudo histórica, seria, em boa medida, obra da pintura de Poussin. O "memento mori" passa a ser calmo, com uma gravidade sem retórica –justo o modo como o senti ao ver a obra de Gober.

Daí me deter nesse trabalho para analisá-lo. Ele não diz do temer a morte. Não diz de uma moral a seguir. Diz da vida do que se foi, ou, melhor dito, se foram –aqui a novidade de Gober: o par. Diz também da vida que vivemos e que melhor viveríamos não fosse a violência que tudo invade. A luta entre o caseiro e o estranho, a casa e o corpo, se transfigura no solidário.

Num dos papéis de parede de Gober há a figura de um negro enforcado como na canção "Strange Fruit", cruelmente linda na voz de Billie Holiday. Ao lado, um homem branco dorme repousado num travesseiro. No "memento mori" solidário de Gober estariam também lado a lado, mas plenos e iguais. O tema existencial ganha dimensão sociológica. A morte é o limite da vida, mas não só. Aqui a violência é um tipo de "vanitas". A violência por toda parte, no mundo, por corpos e casas, é também limite da vida plena. Nada mais atual.


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