Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Sábados pernambucanos

Recife, 1997

Quando cheguei ao Recife, em 1997, Miguel Arraes cumpria seu penúltimo ano como governador de Pernambuco e, com ele Ariano Suassuna, à frente da Secretaria de Cultura. Ao lado do mestre, lembro de percorrer os amplos corredores do Palácio das Princesas e de participar de conversas e discussões, sem ter a real dimensão de suas consequências e de como eu estaria conectado àquilo 18 anos depois. Ariano quebrava paradigmas, trazia o foco para a cultura popular e reconhecia os "mestres do saber". Fazia muito com pouco e fundava os alicerces para um extraordinário desenvolvimento que Pernambuco viveria na área da cultura anos depois.

Eu era um garoto aventureiro percorrendo o Brasil em busca de um sonho. Na época, lançava meu primeiro disco, "João Pernambuco - O Poeta do Violão", dedicado aos 50 anos da morte desse ícone da cultura brasileira. O objetivo era encontrar o Brasil de Heitor Villa-Lobos e ativar genes adormecidos pela poluição.

Ariano abriu-me as portas de um rico e vasto mundo e criou as condições para eu me estabelecer na cidade. Foram anos profícuos que resultaram em dois discos dedicados a João Pernambuco (um em duo com Baden Powell e outro com músicos de Pernambuco e da Paraíba, como os antológicos Quinteto de Paraíba e o Quinteto Brassil, do saudoso mestre do trombone Radegundis Feitosa), e numa dissertação de mestrado no departamento de história da UFPE, sobre música e sociedade no Recife da primeira metade do século 19.

Acervo pessoal
O dramaturgo Ariano Suassuna e o músico Leandro Carvalho na casa do escritor no Recife em 1997
O dramaturgo Ariano Suassuna e o músico Leandro Carvalho na casa do escritor no Recife em 1997

Em nossos papos, deliciávamo-nos com os relatos dos viajantes estrangeiros que visitaram Pernambuco naquela época, como a britânica Maria Graham, o francês Tollenare, o pastor norte-americano Daniel P. Kidder e o alemão Rugendas. Relemos os "Anais Pernambucanos" de Pereira da Costa, as pesquisas do padre Jaime Diniz, e nos divertimos com as indignações de "O Carapuceiro", editado e redigido pelo padre Miguel do Sacramento Lopes Gama entre 1832 e 1847, entre tantos outros.

Tudo isso serviu de alimento para inesquecíveis tardes de sábado, em conversas na cadeira de balanço que se prolongavam até um delicioso lanche no início da noite, com direito a queijo coalho de produção própria, vindo de sua chácara em Taperoá.

Mas, na verdade, tudo isso era um pretexto para conversarmos sobre o Brasil, sobre literatura, sobre estética e filosofia. Ariano ia descortinando um rico país real, bem diferente daquele oficial, caricato e burlesco, como ele dizia referindo-se a Machado de Assis. Guiava-me para os núcleos de cultura popular, viva e pulsante, que se espalhavam pela Zona da Mata pernambucana e, ao seu lado, vivi momentos inesquecíveis, como quando os maracatus se encontraram em sua homenagem no espaço Ilumiara Zumbi, fundado por ele mesmo alguns anos antes.

Aos 20 e poucos anos, com a personalidade em plena formação, tive a oportunidade de conviver com um grande artista, sábio e generoso.

Hoje, vejo o tamanho desse privilégio e de como foi profunda sua marca em minha alma. Vejo com clareza a importância que tem para nosso país e como será grande nossa responsabilidade de levar adiante suas ideias. Seu exemplo de integridade e compromisso com a cultura brasileira continuarão servindo de inspiração para a construir o futuro de nosso país.

LEANDRO CARVALHO, 39, é secretário de Estado de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso e diretor artístico e regente da Orquestra do Estado de Mato Grosso.


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