Folha de S. Paulo


Leia trecho da novela "A Internacional Argentina", de Copi

SOBRE O TEXTO Este trecho abre a última novela do escritor argentino, que a coleção Otra Língua, da editora Rocco, lança em maio. A antologia trará também "O Uruguaio", primeira novela de Copi, que dá nome ao livro.

*

Conheci Nicanor Sigampa em Paris, no final de oitenta e seis. Já tinha ouvido falar dele, é claro, como todos os argentinos da minha idade. Aquele negro colossal tinha sido o craque da nossa seleção de polo até 1968, quando uma queda do cavalo o afastou para sempre do esporte. Último rebento de uma das poucas famílias de escravos emancipados a construir um nome na aristocracia, Nicanor, depois desse acidente, foi morar em Paris, onde passou a viver de rendas. Encontrei-o no Café de la Paix, conforme combinou comigo por telefone. O sujeito trajava um sóbrio terno fio a fio cinza e um sobretudo de casimira azul; seus cabelos estavam cuidadosamente engomados. Bebia um uísque com coca-cola.

- Conheço seus poemas -disse-me em tom respeitoso, mas sem se aventurar a ir mais longe.

Não gosto que me falem de minha obra, ainda mais para não dizer nada. Perguntei-lhe se ainda montava.

Martin Kovensky

- Vou três vezes por semana ao picadeiro do bois de Boulogne, mas os cavalos de Paris não são como os dos pampas!

O personagem me pareceu antipático. O que queria de mim? Continuou a falar, num tom afetado, das cavalariças de um de seus primos, fornecedor da rainha da Inglaterra, enquanto cavoucava seus soberbos molares com um palito de ouro e marfim, operação repetida cada vez que mastigava uma das batatas fritas que acompanhavam sua bebida; eu me contentava com um chá.

O Natal se aproximava, a praça da Ópera estava animadíssima. Nicanor me mostrou o grupo do Exército da Salvação, reunido ao lado do vendedor de castanhas.

- A velha Europa -disse ele sorrindo com desprezo.- Em nosso país, quando queremos coletar fundos, dançamos o tango.

Perguntei-me o que faria de seus dias em Paris; não me enganava ao suspeitar uma natureza solitária por trás de sua desenvoltura mundana, desenvoltura contida, bem argentina, copiada das maneiras dos viajantes ingleses do início do século. Trata-se de um produto típico do bairro portenho de San Isidro -disse a mim mesmo-, por mais negro que seja.

Uma jovem do Exército da Salvação nos percebeu através da vidraça e entrou no café sem parar de cantar. Rumou direto para nós. Apressei-me a sacar algumas moedas do bolso, mas Nicanor, com um gesto majestoso, tirou seu Rolex para lançá-lo na boina da jovem. Ela chegou a se atrapalhar com os agradecimentos. O gesto chamou a atenção de muitos turistas, fomos aplaudidos por uma família de japoneses.

- Na Europa de hoje, os pobres têm mais necessidade de relógios de ouro que de filés argentinos! -disse ele, sorrindo.

O sujeito começava a me irritar. Tomei mais um gole do meu chá. A mulher do Exército da Salvação deixou a porta aberta e eu fiquei bem sob a corrente de ar. Ele comeu mais duas batatas fritas antes que eu decidisse perguntar de que modo lhe podia ser útil, mas ele se antecipou:

- Já ouviu falar da Internacional Argentina?

- Não. É alguma equipe de polo?

- Oh, não, longe disso.

Tirou do bolso um cartão de visita com bordas douradas (decididamente, o homem gostava de ouro), no qual estava escrito, em caracteres que me recordavam vagamente os de nossa escrita colonial: "Internacional Argentina", e, logo abaixo: "Frutos da imaginação".

Por um instante pensei que se tratava de uma firma de importação-exportação especializada em novos produtos exóticos, como maracujás.

- Nossa organização -apressou-se a dizer- reúne apenas a nata das artes e da inteligência e, como é natural, nós pensamos em você. Evidentemente, não nos restringimos aos argentinos, toda pessoa que partilhe de nossas ideias é bem-vinda.

Eu me encontrava, não havia a menor dúvida, diante de um excêntrico, para não dizer de um louco. Enquanto ele falava, fixava o vazio, a não ser que estivesse se olhando no espelho detrás de mim.

- A Internacional Argentina se propõe a coordenar as ações das quais participam, de modo desordenado, todos os argentinos que vivem no exterior.

- Que ações? -Ousei perguntar diante de seu súbito silêncio.

- Na verdade ignoramos tudo sobre tais ações, salvo que existem.

Tirou e entreabriu uma carteira de couro de crocodilo bordada a ouro.

- É muito claro -seu tom foi ficando mais grave- que existe uma relação entre o jogador de futebol Maradona, Eva Perón, o futuro da Patagônia e os contos inefáveis de nosso bem-amado Jorge Luis Borges.

Sacou da carteira algumas fotos, que colocou diante de meus olhos.

- Nós temos a prova, documentos fotográficos e tudo mais, de que três arquitetos argentinos, que não sabem nada uns dos outros, construíram simultaneamente três monumentos idênticos em lugares diferentes do planeta.
Essa forma, que lembra uma pinha, abriga uma mesquita em Estocolmo, uma usina atômica no Chile e um aviário em Sidney; dois escritores muito conhecidos publicaram no mesmo dia o mesmo romance, um em Barcelona e outro em Bogotá. Eu poderia citar mil exemplos, a história abunda em sinais desse tipo.

De repente, comecei a espirrar. Pedi duas aspirinas ao garçom, ao mesmo tempo que tentava interromper as batidas formidáveis que Nicanor me assestava às costas, como se esse tratamento fosse controlar meus espirros.

Eu não devia ter saído com aquela neve. Senti chegar, minuto a minuto, a gripe que tanto temia. E tudo isso para passar uma hora ouvindo as histórias de um louco gentil.

COPI, Raúl Damonte Botana (1939-1987), escritor e dramaturgo argentino.

CARLITO AZEVEDO, 53, é poeta e tradutor, autor de "Monodrama" (7Letras).

MARTÍN KOVENSKY, 56, é artista plástico, ilustrador e professor.


Endereço da página: