Folha de S. Paulo


Filmes de vingança oferecem míticos protetores de meia-idade

Houve época em que um ator prestigioso que estivesse na metade do caminho de sua jornada pela vida trabalharia como astro convidado em uma série de TV a cabo para ajudá-lo a transpor um momento sombrio de sua carreira. Mas a TV a cabo já não é lugar para entretenimento de segundo ordem, e os atores de meia-idade, em contraste com as atrizes, não sofrem de falta de opções de trabalho. Isso se aplica especialmente ao florescente subgênero de filmes de vingança feitos para, por, e essencialmente sobre eles.

Qualquer que seja a trama de cada um deles na prática, os filmes da série "Busca Implacável", com Liam Neeson, são, primordial e definitivamente, fantasias masculinas de superpotência. As capacidades especiais que tornam o Bryan Mills de Neeson um personagem tão letal para a gangue de caricaturais mafiosos albaneses que lhes servem de inimigos também fazem dele um veículo para a realização das fantasias de membros da Geração X que começam a ficar grisalhos e a ter saudades da adolescência. As cenas que o mostram desarmando e desmembrando uma dúzia de malvados em um exótico mercado qualquer no exterior não são diferentes, funcionalmente, de um comercial de Viagra, por venderem a promessa de experiente sabedoria combinada a pujança física.

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O ator Liam Neeson em cena do filme
O ator Liam Neeson em cena do filme "Busca Implacável 2"

Mas isso nem começa a explicar por que esses filmes são tão agradáveis de assistir. A julgar pelo sucesso dos três filmes da série "Busca Implacável", da proliferação de trabalhos semelhantes estrelados por Neeson (como "Noite Sem Fim", que estreia dia 2/4) e da corrida de outros grisalhos veteranos por esses papéis (como Sean Penn, com "O Franco-Atirador", que estreia dia 9/4), os brigões de meia-idade estão satisfazendo tanto as audiências quanto as bilheterias.

Esses filmes começam de modo dramaticamente seco, o mais das vezes, com uma ofensa absurda, do tipo "você mexeu com o cara errado", perpetrada contra um fatigado matador profissional em repouso, ou contra sua filha –real ou postiça. Em lugar de nos deslumbrarem com as especificidades dos personagens, é o quase anonimato desses heróis que os torna perfeitos para as nossas projeções –e faz dos personagens veículos ideais para a pétrea e grave expressão de Neeson, a graça entorpecida de Keanu Reeves ao perseguir vilões em "De Volta ao Jogo", que saiu no ano passado, ou a desenvoltura leonina de Denzel Washington em "O Protetor".

E em lugar de situações únicas, é a semelhança dos procedimentos que nos propicia envolvimento e diversão. Como um ritual, quanto melhor conhecermos as trajetórias que os aguardam, e quanto mais firmes eles forem em manter esse percurso, mais satisfatórios se tornam os filmes.

Quando o encontramos, o antigo matador profissional, antigo agente da Agência Central de Inteligência (CIA) ou antigo policial vive assombrado por um horrendo erro em seu passado, e sofre de uma culpa da qual jamais se recuperará. Ele bebe, ou bebia mas deixou de fazê-lo. E sua paralisia traumática só desaparece quando surge uma missão; é só quando ele está em modo de ação, envolvido em uma sucessão de mortes com o objetivo de resgatar sua honra (e a jovem inocente a que se sente apegado) que ele realmente se sente em casa.

Para chegar a esse ponto, tempo e cuidado são dedicados a acumular o investimento emocional e manipular o balanço moral, com cenas que mostram os vilões sendo muito malvados (matando um cachorro em "De Volta ao Jogo", sequestrando, espancando ou assassinando mulheres nos demais títulos). Dessa forma, mesmo em sua dimensão mais grotesca, a revanche que virá pode ser vista como moralmente aceitável, quase bíblica. A ideia é que pensemos nesses homens como anjos da vingança.

E quanto mais competentes eles forem em praticar a velha ultraviolência, melhor. Temos aqui um cinema semelhante aos videogames de tiro; não queremos ver o nosso avatar derrotado. Queremos mortes ágeis e aniquilação coreográfica para os corruptos, os cruéis, os injustos –qualquer que seja o meio necessário. Buscamos uma liberação catártica de todos os nossos medos –nós que não somos capazes de derrotar as mais simples frustrações em nossas vidas reais.

De fato, a revelação mais sombria que surge desse subgênero não é o desrespeito generalizado pela lei ou o nacionalismo e estereótipos raciais grotescos, mas o ódio que ele explora, a raiva reptiliana que nossas feridas nos causam e que esse gênero parece dedicado a garimpar.

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Josh Brolin como Joe Doucett em cena da versão americana de 'Oldboy
Josh Brolin como Joe Doucett em cena da versão americana de 'Oldboy'

Se apontarmos o microscópio na direção oposta, o que esses filmes parecem estar dizendo sobre a sociedade não soa muito reconfortante. Apodrecido de vício e eivado de toda forma de venalidade, o local da trama, seja Paris como em "Busca Implacável" ou uma versão muito estilizada dos Estados Unidos, como em "De Volta ao Jogo", tem algo de fantasia paranoica, da crença cada vez mais prevalente de que maus governos e más pessoas estão a fim de nos derrubar. Talvez o fato de que esses exércitos de um homem só sejam capazes de restaurar a ordem em um mundo de guerra perpétua responda pelo sucesso repetido desses rituais sangrentos.

Como na retórica política, quanto menos consideração dedicarmos ao caráter dos malévolos, mais fácil se torna fazer deles receptáculos para nossas múltiplas aversões. E os vilões desses filmes funcionam como pouco mais que metáforas de pele um tanto escura para a cobiça, a dissipação, o cinismo e até o incesto.

O que esses filmes não nos dizem é qualquer coisa de crucial sobre o que é ser um pai ou homem no mundo real. Como nos filmes sobre a máfia ou samurais, a etiqueta aqui é a do macho estoico, e a da dedicação do guerreiro à tarefa que lhe cabe: falar baixo, se é que palavras são necessárias, e portar uma gigantesca bengala –se o sujeito não conseguir encontrar qualquer arma mais grotesca.

Esse formato atingiu a maturidade no cinema asiático muito antes de chegar ao Ocidente. Boa parte do trabalho de Luc Besson dentro desse gênero ("Nikita", "Carga Explosiva", "Busca Implacável", "Lucy") tem pesadas dívidas para com a escola asiática de cinema, da qual ele toma muito de empréstimo e à qual presta reverência. E "O Franco-Atirador", de Penn, talvez seja parte de uma nova onda de filmes sobre renegados, combinando o seu DNA brutal e enxuto a um segundo gênero, no caso o thriller político, para criar uma nova forma híbrida. E muitos dos melhores filmes modernos sobre ronin itinerantes e vingadores sem nome continuam a ser produzidos na Coreia do Sul ("O Homem de Lugar Nenhum"), Hong Kong e Japão.

A versão de Spike Lee para o clássico sul-coreano "Oldboy", lançada em 2013, é um filme de vingança clássico, em sua forma mais pura e simples. O trabalho conduz todos os motivos comuns do gênero a um nada niilista –o que faz do filme uma história sobre outros filmes como ele. Josh Brolin interpreta um bêbado, pai e bandido que foi mantido aprisionado por 20 anos em cárcere privado, transformado em instrumento ideal de vingança e lançado ao mundo. O resultado é uma onda de violência sangrenta, insensata e terrível mas, sem revelar a grotesca surpresa final do filme, me limitarei a afirmar que a catarse que nos acostumamos a esperar por conta da vingança ritual e do instinto paterno do protagonista termina destruída exatamente por essas características. A vingança do herói desse filme consome a si mesma, um círculo fechado, e o conduz de volta ao zero.

Em casos como o de "Oldboy", o vingador mesmo está tão maculado, ao final do filme, quer por seus passados delitos ou pela violência grotesca de suas ações ao purgar os nossos erros, que ele não pode ser completamente absolvido, e continua no purgatório. Respeitando suas inclinações bíblicas, ele pode então se sacrificar pela menina, ou pelo menos se mostrar disposto a isso, e continuar a viver como sombrio cavaleiro errante ("O Protetor" etc.) Dessa forma, podemos nos reconfortar com o conhecimento de que nossos míticos protetores de meia-idade continuarão por aí, prosperando nos anos grisalhos de suas carreiras –e sempre prontos para uma continuação.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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