Folha de S. Paulo


Nações florescem quando pessoas desfrutam de um senso de inclusão

Democracias liberais só podem florescer quando as pessoas sentem que, apesar de todas as suas diferenças, elas têm interesse no bem-estar do país que chamam de lar

Religião não é o nosso forte no debate público, e certamente perdemos o rumo com relação ao Islã. De um lado há os apologistas muçulmanos que bradam "islamofobia!" a cada vez que surge uma notícia sobre o islamismo e do outro aqueles que percebem uma crescente islamização aonde quer que vão, e o que temos na verdade são múltiplas realidades que não podem ser simplesmente descartadas ou ignoradas.

Uma recente pesquisa de opinião pública da BBC na qual respondentes muçulmanos foram questionados com relação à sua lealdade para com o Reino Unido gerou manchetes conflitantes que tomavam por base a palavra "lealdade". Estatísticas são perigosas, porque ocultam tanto quanto revelam. A pesquisa não tem nuanças; nela, os muçulmanos são englobados como um bloco de pessoas que têm a obrigação moral de responder a esse tipo de pergunta.

Sim, depois do ataque ao "Charlie Hebdo", pesquisas desse tipo se tornam inevitáveis. Mas se queremos levar essa conversa a sério, precisamos de constatações mas sofisticadas, em lugar de nos limitarmos a concluir que a maioria dos muçulmanos talvez não seja tão psicopata quanto imaginávamos. Assim, desde que eles respondam do modo certo, podemos ficar seguros de que não existem fissuras ideológicas crescentes em nossas sociedades.

A suposição aqui é de que a vasta maioria –95%, de fato– de muçulmanos que se declararam leais ao Reino Unido deveria nos reconfortar por a divisão entre "nós e eles" ser menos grave do que pensávamos. Que 93% deles afirmem que os muçulmanos deveriam obedecer sempre as leis britânicas parece a melhor das notícias em termos de coesão social. Mas quando 24% dos respondentes dizem apoiar atos violentos contra quem publique imagens de Maomé, e quando quase metade deles –45%– acredita que os clérigos extremistas que pregam violência contra o Ocidente não estão "fora de contato", é preciso começar a questionar o que "lealdade" quer dizer, na realidade.

Só porque uma pessoa não deseja explodir uma bomba contra o país em que vive não significa que ela deva apoiar em silêncio a violência de terceiros. E embora a maioria dessas pessoas não deseje advogar abertamente qualquer forma de violência, a questão das afeições divididas continua a existir.

Dizem-me frequentemente que muitos muçulmanos têm queixas legítimas –o fato de que sejam chamados a explicar todos os males cometidos em nome do Islã quando nenhuma outra comunidade ou religião se vê forçada a fazer o mesmo. A mídia alimenta constantemente essa tendência, ao tomar o Islã por foco como ameaça aos valores britânicos.

Essa queixa pode ser legítima, mas é igualmente verdade que aos muçulmanos não resta alternativa a não ser reconhecer e encarar essa percepção cada vez mais presente. Eles precisam lidar com a polaridade religiosa e social cada vez mais grave dentro de suas comunidades. É esse fenômeno que cria um mal-estar para a identidade muçulmana na Europa. Nenhuma sociedade é perfeita, mas um senso de injustiça infundado só serve aos interesses daqueles que desejam espalhar mais ódio e mais divisão.

Não acredito que qualquer um de nós deva negar a ameaça real que o extremismo islâmico –boa parte do qual propelido por toda espécie de conflito nacionalista no Oriente Médio– representa. A ideia mesma de um Ocidente liberal é que serve de alvo ao Islã radical e político. E isso vem ganhando ímpeto porque a situação é narrada como uma revanche pelos séculos de colonialismo político e cultural nas terras muçulmanas.

A escolha entre "lealdade ao Estado" e "lealdade à religião" é falsa e perigosa. O que poderia ser mais alarmante para o Ocidente do que uma pequena minoria erodindo gradualmente as sociedades pacíficas que boa parte da Europa batalhou muito por adquirir? É aí que começa a radicalização; ela oferece uma narrativa alternativa de convicção e certeza na qual o Islã volta a triunfar gloriosamente. Quer seja por meio de militantes armados da espada ou de mulheres envoltas em véus, tudo é apresentado como parte de um mesmo ideal.

Não devemos subestimar a poderosa retórica que torna esse islamismo global menos fantasia que realidade atingível. É algo que pode apelar a muitos daqueles que talvez nem se vejam como violentos ou mesmo como oponentes dos valores ocidentais. Uma vez mais, é a ideia da glória muçulmana restaurada, e não as realidades vividas no cotidiano, que se prova tão sedutora. É essa a mentalidade que o Estado Islâmico e outros grupos conseguem explorar com grande facilidade. Negá-la é negar a realidade do aqui e agora.

Viver na Europa é um privilégio e exige o compromisso moral de agir de determinada maneira. O Ocidente pode enfrentar toda espécie de questões, mas oferece o alicerce mais procurado por uma sociedade civil –a paz.

Se os muçulmanos amam ser britânicos, é preciso que sejam cidadãos ativos para garantir essa paz. Pode parecer que isso representa uma carga injusta para eles, mas por enquanto, simplesmente reagir aos acontecimentos, em lugar de se esforçarem por preservar uma visão, não servirá para garantir um pluralismo saudável.

Ser britânico envolve um sentimento de inclusão, de se sentir parte de um país ao qual a pessoa chama de lar; e embora isso possa significar muitas coisas, não deveria fazer com que a pessoa se sinta menos muçulmana. Existem múltiplas maneiras de viver em um Islã mais fiel e mais inclusivo do que o discurso estreito e politizado de hoje permite. E lealdade não é um termo que abarque todos os significados.

Lealdade significa compromisso, de palavra e de fato, para com o software da democracia, por exemplo, respeito, tolerância e igualdade. Mas acima de tudo requer que a pessoa não reaja com violência àqueles de quem pode discordar, ou apoie violência contra eles.

Hoje, nenhuma outra religião vê tantos de seus fiéis matando uns aos outros. Sim, isso pode estar acontecendo "lá", bem longe, mas a influência do fato é vasta.

As democracias liberais prosperam por permitirem que pessoas de diferentes origens e crenças possam viver juntas, de alguma forma. Mas esse tipo de democracia só florescerá quando as pessoas sentirem que, apesar de todas as suas diferenças materiais e culturais, elas têm interesse comum na vida moral e no bem-estar do país ao qual chamam lar.

MONA SIDDIQUI é professora de estudos islâmicos e inter-religiosos na Universidade de Edimburgo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: