Folha de S. Paulo


Kim Gordon, antilíder do Sonic Youth, fala sobre a banda e separações

Kim Gordon conhece bem a sua reputação. "Distante, impassível ou remota", ela escreve em seu livro de memórias. "Opaca ou misteriosa ou enigmática, ou mesmo fria".

Mas em lugar de desmitificar a personagem que construiu durante seus 30 anos como antilíder do Sonic Youth, Gordon espera apresentar um relato mais tridimensional sobre si mesma em seu livro, "Girl in a Band", que sai nos Estados Unidos pela Dev Dey Street Books, divisão da editora HarperCollins.

"As pessoas em geral só projetam as coisas delas em você - elas não me conhecem de verdade", diz Gordon durante um café da manhã em Brooklyn. "Minha sensação era a de que estava guardando tudo isso. Retendo os fatos para falar deles na hora certa".

Jessica Rinaldi/Reuters
Kim Gordon e Thurston Moore, em show do Sonic Youth em Nova York (2011)
Kim Gordon e Thurston Moore, em show do Sonic Youth em Nova York (2011)

Mas o livro não é uma biografia reveladora típica. "Pensei em colocar um alerta no começo - 'sem sexo, drogas ou rock'n'roll'", ela prosseguiu, falando em voz quase inaudível e deixando suas frases como que interminadas, ainda que estivesse expressando ideias completas e nas quais ela aparentava ter plena confiança. "Sou uma pessoa de entrelinhas".

"Girl in a Band" começa e termina com uma separação - duas na verdade: o fim simultâneo do Sonic Youth e de seu casamento de 27 anos com Thurston Moore, com quem ela criou a banda em 1981. Mas as revelações acusatórias param por aí. O resto das memórias, como o olhar felino e indecifrável e a voz monótona de Gordon, é minimalista e seco, quase monossilábico, revelador em breves momentos oníricos mas cuidadosamente calculado para evitar exposição excessiva. O texto não traz momentos embaraçosos.

Gordon, que nos anos 90 era emblematicamente cool, poderia ser acusada de exibicionismo por conta dos muitos nomes que cita como amigos, se as conexões entre ela e as pessoas em questão não fossem tão naturais: o compositor Danny Elfman foi seu namorado no segundo grau; Kurt Cobain era fã da banda e grande amigo dela; e Gordon descreve com singeleza a ocasião em que sua filha conheceu o escritor William Burroughs, durante uma turnê do Sonic Youth.

Os relacionamentos de Gordon também transcenderam a música. Depois que o Sonic Youth assinou com uma grande gravadora, seguido logo depois pelo Nirvana, ela ajudou a lançar as carreiras da atriz Chloë Sevigny, que estreou no vídeo de "Sugar Kane" (em companhia da infame coleção grunge do estilista Marc Jacobs), e de Sofia Coppola, que organizou um desfile para a X-Girl, a grife de moda de Gordon. No ano passado, ela interpretou uma paciente de reabilitação na série "Girls", da HBO.

A decisão de registrar tudo isso por escrito foi mais prática que artística. Gordon, 61, está solteira, sua filha está na universidade e ela conta com uma geração de fãs presumivelmente dispostos a segui-la na próxima fase de sua vida. Gordon diz que o livro é um jeito de "abrir outras oportunidades de encontrar maneiras de me sustentar, para ser bem honesta". Depois de décadas de exploração de dissonâncias no rock indie e de trabalhos experimentais de arte visual, ela acrescenta, "Girl in a Band" é "a coisa mais convencional que já fiz".

Também é uma tentativa de definir seu legado fora do Sonic Youth. David Kendall, ex-apresentador do programa "120 Minutes", da MTV, um dos defensores da banda, diz que Gordon "não precisa projetar um personagem forte ou mensagem de marketing" e "pode só ser ela mesma". Como estrela do rock bem aceita no mundo da arte, ela mostra às mulheres que "não existe necessidade de que se vendam como objetos sexuais", ele diz, ou de que "fiquem escondidas no fundo do palco".

Mas já que o trabalho que define Gordon está tão ligado ao de Moore, Carrie Thornton, editora executiva da Dey Street Books, diz ter proposto o projeto a ela da seguinte forma: "Melhor que você conte a história do que esperar que alguém a conte por você, e não o faça muito bem".

Um modelo possível era "Just Kids", de Patti Smith, que se tornou best seller e ganhou um National Book Award na categoria não ficção. Memórias de roqueiras, diz Thornton, "tendem a ser mais relacionais - certamente, no caso de Kim e Patti, existe um senso de relação para com o tempo e espaço".

Mas para Gordon, "Just Kids" - uma carta de amor à Nova York boemia e ao artista Robert Mapplethorpe - é uma história muito diferente da sua. E, de qualquer forma, "não li o livro", ela diz. Quanto às suas memórias, ela afirma que "eu não queria que fossem românticas".

Isso se aplicava tanto a lugares quanto a pessoas. "Escrever sobre Nova York é difícil" - assim começa o capítulo no qual fala de como conheceu Moore. "Isso acontece porque, sabendo o que sei agora, fica difícil escrever sobre uma história de amor quando tenho um coração partido".

Mas o livro não teria existido sem o divórcio de Gordon, que segundo ela foi causado por um caso entre Moore e uma mulher mais nova, história que as duas partes discutiram na mídia. "Quando algo assim acontece, você começa a recuar e examinar sua vida toda", ela diz. "Como cheguei onde estou?"

A resposta começa em Los Angeles, onde Kim Gordon cresceu e escreveu boa parte do livro. Ela descreve amorosamente os seus pais, simpatizantes dos beatniks, mas seu relacionamento com o irmão, Keller, que sofre de esquizofrenia, é o espectro que pende sobre suas lembranças.

Sua timidez, por exemplo, vem de "anos de zombaria" de Keller "por qualquer sentimento que eu expressasse", escreve Gordon. O relacionamento negativo entre irmão e irmã a faz buscar "personalidades fortes" em seus mentores masculinos, ela diz, o que a levou a Moore.

Nenhum dos homens mais importantes na vida de Gordon leu o livro. "Por motivos óbvios, não o mostrei a Thurston", diz. "Agora estou oficialmente divorciada - é recente. O que quer dizer que isso não importa".

Ela acrescenta que "ele talvez escreva seu livro. Realmente não me interessa". (Moore, por intermédio de seus representantes, se recusou a comentar para este artigo.)

No livro, o Sonic Youth parece quase uma nota de pé de página. Banda essencial para uma geração na qual a vanguarda e o rock comercial nem sempre conviveram confortavelmente, "o grupo deu forma à minha vida e a quem sou, e por isso seria tolo não escrever sobre ele", diz Gordon.

Mas a seção intermediária do livro, na qual ela decodifica suas letras e vida como instrumentista em turnê, parece quase perfunctória. "Eu poderia ter escrito mais sobre isso, mas meio que me entediei", ela diz. "Não queria que o livro passasse a ser sobre o Sonic Youth".

Agora, além da escrita e de seu trabalho com uma nova banda, a gutural Body/Head, Gordon retomou seu esforço nas artes visuais. Uma exposição agendada para a 303 Gallery, em Manhattan, explorará a forma pela qual "Nova York foi embelezada para atrair compradores estrangeiros de apartamentos".

Além do trabalho, há a reconstrução da vida pessoal. Gordon fala fanaticamente de televisão - ela assiste as séries "The Good Wife", "Scandal" e "The Affair", ainda que tenha dito que aqueles adultérios todos sejam pura coincidência - e voltou a namorar. "Acho mais fácil conhecer caras solteiros em Los Angeles", ela diz.

Também planeja vender a casa em Northampton, Massachusetts, em que vivia com Moore e Coco, a filha do casal, desde 1999. Gordon talvez passe a dividir seu tempo entre a costa oeste e Nova York - possivelmente em um pequeno apartamento em Brooklyn com seus dois cachorros.

"Por algum tempo, fiquei preocupada com a solidão", diz Gordon. "Agora, estou realmente curtindo a liberdade".

Tradução de PAULO MIGLIACCI.


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