Folha de S. Paulo


Trajetória do pesquisador é marcada por querelas

Não é trivial resumir as objeções que a antropologia cultural levanta contra Napoleon Chagnon. A controvérsia tem quase meio século, e a tarefa fica mais complicada quando muitos dos antropólogos relevantes do Brasil se recusam a dar entrevistas sobre o caso.

O panorama se turvou de vez em 2000, com o livro "Trevas no Eldorado". Nele o jornalista Patrick Tierney acusava Chagnon e o médico James Neel de, em 1968, terem causado uma epidemia de sarampo entre os ianomâmis da Venezuela e experimentado nos índios um tipo perigoso de vacina, além de negar-lhes socorro médico.

Chagnon e Neel foram depois inocentados dessas acusações graves. Bruce Albert, antropólogo e crítico de Chagnon que trabalha há 36 anos com os ianomâmis, já escreveu sobre a ausência de fundamento das alegações de Tierney.

Ana Prata

Nem por isso Albert deixa de assinalar sérios erros éticos da dupla. Para ele, os ianomâmis foram usados, sem saber, como grupo de controle para estudos sobre efeitos de radiação nuclear no sangue de sobreviventes de bombardeios em Hiroshima e Nagasaki.

Chagnon, capataz de Neel na expedição, obtinha amostras de sangue em troca de machados, facões e panelas. Embora essa prática perdurasse nos anos 1960-70, Albert ressalva que regras exigindo consentimento informado já vigiam desde 1947 (Código de Nuremberg) e 1964 (Declaração de Helsinque).

Os reparos ao trabalho de Chagnon abarcam também a própria ciência. Ele se diz superior aos antropólogos tradicionais, que acusa de relativistas pós-modernos, xingamento comum nos setores cientificistas da academia americana.

A polêmica teve início com o livro "Yanomamö: The Fierce People", em que Chagnon apresentou sua tese de que ianomâmis são uma relíquia ancestral da espécie humana: selvagens com compulsão pela guerra como forma de obter mulheres, escassas devido à prática do infanticídio feminino.

Os críticos da etnografia de Chagnon afirmam que ele nunca comprovou o infanticídio seletivo. Com efeito, a explicação foi abandonada em outros estudos, como um famigerado artigo de 1988 no periódico científico "Science".

O trabalho recorre a dados demográficos coletados por Chagnon para corroborar sua noção, bem ao gosto da sociobiologia, de que os homens mais violentos eram os que tinham mais mulheres e filhos. Esses seriam os que os ianomâmis chamam "unokai" –segundo o autor, os mais temidos no grupo (e, por isso, mais prolíficos).

Albert, Jacques Lizot e outros antropólogos consideram que ele misturou alhos com bugalhos. "Unokai" não seria um atributo individual, mas o estado de impureza (simbólica) daquele que mata alguém com armas ou feitiçaria, ou mesmo só entra em contato com o sangue de cadáveres de inimigos.

Além disso, em incursões contra outras aldeias, os guerreiros muitas vezes dão golpes e flechadas em adversários já mortos. Isso os tornaria "unokai", não homicidas.

Os mais admirados não seriam esses, mas os "waitheri", algo como "valorosos", que se distinguem não só pela valentia, mas também pela capacidade de liderar, de falar bem, até pelo humor.

Não bastasse isso, os críticos apontam manipulação de números. Para inflar seus dados e chegar a 44% de homens que teriam participado de mortes e tinham até o triplo de filhos na comparação com os não "unokai", Chagnon teria excluído da amostra jovens de 20 a 25 anos e homens mortos –violentos ou não, com ou sem filhos.

Em fevereiro de 2013, o antropólogo Marshall Sahlins renunciou à Academia Nacional de Ciências dos EUA após o ingresso de Chagnon. Num artigo em que explicava o ato, defendeu que um antropólogo alcança entendimento superior de outros povos quando toma seus integrantes como semelhantes –e não objetos naturais, "selvagens", ao modo de Chagnon.

"É claro que esse não é o único meio de conhecer os outros. Podemos também utilizar nossa capacidade simbólica para tratá-los como objetos físicos", escreveu. "Mas não obteremos o mesmo conhecimento dos modos simbolicamente ordenados da vida humana, do que é a cultura, ou até a mesma certeza empírica."

MARCELO LEITE, 57, é repórter especial e colunista da Folha.


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