Folha de S. Paulo


Uma casa digna de um matador -e de animais falantes

Marjane Satrapi constrói casa para seu herói em "The Voices"

O mais recente filme inclassificável da artista e diretora Marjane Satrapi ("Persépolis", "Frango com Ameixas") é "The Voices", uma comédia sobre um serial killer que estreou nos Estados Unidos em 6 de fevereiro. "O roteiro era completamente diferente de tudo que eu já tinha lido na vida", diz Satrapi em entrevista telefônica, de Paris. "Por isso, me apaixonei totalmente pelo projeto".

Escrito por Michael Perry, cujos créditos incluem programas de TV e "Atividade Paranormal 2", o protagonista do filme é Jerry (Ryan Reynolds), um homem tagarela que trabalha em uma fábrica de banheiras. Ele também sofre de uma doença mental, e quando deixa de tomar seus remédios acredita que seu cachorro e seu gato falam com ele. O gato o encoraja a assassinar a mulher de sua vida, e o cachorro serve como voz da razão.

O filme é exibido no geral da distorcida perspectiva de Jerry - uma visão febril, com cores e formas coloridas servindo de fundo à sua violência. A audiência em alguns momentos pode sentir a realidade, e brutalidade, de suas ações, quando ele toma seus remédios, volta à Terra e descobre que seu apartamento já não é tão imaculado quando imaginava.

Imagens sangrentas não estavam entre os principais interesses de Satrapi, mas ela ficou intrigada com a possibilidade de criar um filme de terror visualmente criativo. "Se há sangue na história e esse elemento de beleza não está presente", ela diz, "o trabalho se torna repulsivo".

UM APARTAMENTO FEITO PARA MATAR

O apartamento de Jerry fica por sobre um boliche, e sua aparência é a de um espaço aprisionado na metade do século 20. Para a mobília e os tons da palheta de cores, Satrapi e seu diretor de arte, Udo Kramer, desenvolveram um esquema baseado em um livro sobre decoração de interiores em estilo "caubói moderno".

"Nós queríamos uma cara bege, limpa, mas não uma coisa de extremo bem gosto", ela diz. "O sofá que escolhemos não nos diz se é dos anos 50 ou dos anos 70. Ele não tem idade."

Outra ideia era dar a Jerry uma pequena cama embutida na parede de seu quarto. Satrapi queria apresentar o personagem como um menino aprisionado no corpo de um homem, alguém que não parasse muito para refletir se alguém escolheria ou não dormir com ele.

E porque Jerry trabalha com embalagem e transporte, Satrapi queria que seu apartamento tivesse certo ar de uniformidade. Isso fica evidente na maneira grotesca mas ordeira pela qual ele armazena os pedaços dos corpos de sua vítima em recipientes plásticos.

"O Tupperware não constava do roteiro", diz Satrapi. "Mas fiquei imaginando que, se eu fosse psicopata e trabalhassem em embalagem e transporte, provavelmente guardaria os corpos em recipientes da Tupperware, empilhados, e que isso me daria uma parede perfeita."

PENSANDO ROSA

Porque Satrapi vem da pintura ("Persépolis", o filme que ela codirigiu com Vincent Paronnaud, era um trabalho de animação), a abordagem que emprega para o filme com atores reais envolve interesse no uso da cor como recurso de identidade e composição. Na Milton International, a fábrica de banheiras em que Jerry trabalha, ela fez a ousada escolha de colocar o pessoal em uniformes cor de rosa.

"Sou muito fã do rosa", diz. E embora uniformes industriais rosa brilhante possam não ser comuns, Satrapi desejava ajudar a criar o "mundo fantástico de Jerry", um lugar mais intenso no qual a perspectiva luminosa do personagem se reflete nas escolhas de cor.

Mas mesmo fora do mundo de Jerry, Satrapi considerava que uniformes rosa eram uma escolha justificada. "Eles trabalham em uma fábrica de banheiras", diz. "Estão fazendo banheiras, não armas".

Ela imaginou que o diretor de recursos humanos da fábrica, em uma cidade pequena e remota, poderia tomar a decisão de adotar uniformes rosa para elevar o moral e criar um ambiente de trabalho mais alegre.

Satrapi tampouco queria que as cores dos uniformes fossem associadas a outros trabalhos. Ela achava que laranja seria muito parecido com o filme "Car Wash", e que o azul pareceria mais adequado a, por exemplo, varredores de ruas. "O branco e médico demais", ela diz. "E marrom não dava. Não estamos falando de uma fábrica de vasos sanitários".

ENXUTO MAS BONITO

O velho boliche, há muito fechado, por sobre a qual Jerry vive representa uma estética vintage que interessava a Satrapi. Ela viaja bastante pelos Estados Unidos, visitando cidades pequenas, e fazia uma boa ideia de como desenvolver esse tipo de look.

"Quando você está bem no meio dos Estados Unidos, as casas e bares não têm nada de muito tecnológico", ela diz. "Muitas coisas ficaram paradas nos anos 80 e 90, não são supermodernas."

A placa do boliche e sua fachada foram construídos para o filme em locação, em um bosque perto de Berlim. Ela e Kramer estudaram fotos de mais de 200 boliches norte-americanos para desenvolver um senso de estilo e a autenticidade que queriam para o filme. Pelo menos um espectador do filme achou que aquele boliche realmente existia em algum lugar dos Estados Unidos.

"Estávamos passando o filme no Sundance e um espectador me disse que conhecia aquele lugar, que o boliche ficava em Michigan", conta Satrapi. "E eu respondi que não, ele estava enganado. Não era em Michigan."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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