Folha de S. Paulo


Na Índia, um boom do livro diferente

Uma geração ascendente de escritores de sucesso popular é só um dos sinais de um setor em rápida mudança

Milhares de pessoas lotavam os jardins do Palácio Diggi, duas semanas atrás, para testemunhar o tocante final de uma longa rixa entre VS Naipaul e Paul Theroux, no festival de literatura de Jaipur. O evento anual, que atraiu cerca de 52 mil visitantes à pitoresca Jaipur, no norte da Índia, começou com um debate sobre "Uma Casa para o Senhor Biswas" (1961), o primeiro romance de sucesso de Naipaul, que Theroux elogiou extensamente, diante do autor, nascido em Trinidad, que assistia da primeira fila.

Os dois trocaram um aperto de mão hesitante, alguns anos atrás, mas não haviam aparecido juntos em público desde que começou o desacordo entre eles, quase duas décadas atrás, quando Theroux descobriu que um livro com dedicatória presenteado por ele a Naipaul havia sido colocado em leilão. A rixa durou até que Naipaul, envelhecido, fosse levado ao palco do festival literário indiano em sua cadeira de rodas para algumas palavras de agradecimento ao escritor que um dia foi seu protegido.

Naipaul, ainda que tenha de indiano apenas os ascendentes e que tenha criticado o país em livros como "An Area of Darkness" (1964) e a "A Wounded Civilization" (1977), se enquadra perfeitamente à imagem que muitos leitores mundiais fazem sobre a cultura literária indiana: uma linhagem altiva, com prêmios Booker para autores como Salman Rushdie, Arundathi Roy e Aravind Adiga. Mas aqueles que buscam um vislumbre quanto ao futuro editorial do país poderiam bem ignorar de todo a presença de Naipaul em Jaipur e se unir às multidões (muito mais jovens) que se reuniram dias depois para ouvir a palestra de um escritor em geral desconhecido fora do país: Amish Triparthi, autor de um trilogia de grande sucesso de livros de suspense mitológicos inspirados pelos deus hindu Shiva.

Tripathi - ou simplesmente Amish, o nome pelo qual é identificado nas capas de seus livros - é uma figura central na nova onda de ficção comercial indiana, cujas vendas, no caso de certos autores, agora excedem facilmente as de figuras literárias mais renomadas. Desde que o primeiro volume saiu, em 2010, a trilogia Shiva, de Tripathi, vendeu cerca de 2,2 milhões de cópias, o que faz dela a série de venda mais rápida na história editorial do país. Em uma palestra lotada no final de semana passado, ele revelou planos para uma nova série de três livros, desta vez inspirados na história do lorde Ram, outra divindade hindu.

O sucesso de Tripathi também revela alguma coisa sobre a prosperidade do setor editorial indiano. As vendas de livros estão estagnadas em culturas maduras como o Reino Unido e os Estados Unidos; na Índia, em contraste, o mercado cresceu em 41% desde 2011, com 18 milhões de cópias vendidas em inglês e em idiomas locais no ano passado, de acordo com dados da Nielsen Book-scan. E as estatísticas podem na verdade subestimar a expansão do mercado, já que medem vendas em apenas uma amostra de livrarias e excluem alguns sites de varejo online, especialmente a Amazon.

Estimativas confiáveis quanto às dimensões do setor são igualmente difíceis de obter, mas Ananth Padmanabhan, vice-presidente da Penguin India, estima o faturamento anual com livros em inglês - mercado substancialmente maior que o de livros nos idiomas locais da Índia - em cerca de US$ 2 bilhões, e em ascensão rápida. A crescente gama de festivais literários, dos quais o de Jaipur é o principal, parece confirmar a vitalidade do setor. A Índia já é o terceiro maior mercado mundial para livros em inglês, de acordo com a Associação Internacional de Editoras, e sua ascensão econômica com o tempo deve levá-la ao segundo posto, deixando para trás o Reino Unido - e no futuro mais distante, talvez até à liderança do ranking.

Mas Tripathi argumenta que esse período de saúde robusta, e especialmente o sucesso de vendas de que desfrutam os autores mais populares da Índia, surgiu à revelia da elite literária do país. "O setor editorial indiano, até cerca de 10 anos atrás, tinha de indiano só o nome", ele diz. "Era mais uma espécie de setor editorial britânico por acaso operando na Índia... um grupo muito ocidentalizado, muito anglicizado, sem quaisquer raízes reais na Índia. E isso se refletia nos livros que as editoras publicavam - como se para apresentar o exotismo indiano a uma audiência ocidentalizada".

Isso começou a mudar em 2004, argumenta Tripathi, com a publicação de "Five Points Someone", do jovem romancista Chetan Bhagat, uma história ágil que se passa em uma universidade de Nova Déli. Depois veio uma série de novos trabalhos de Bhagat, cada qual mais bem sucedido, tratando de temas amorosos e de aspirações profissionais, e dirigidos aos leitores mais jovens e urbanos. "Half Girlfriend", o mais recente lançamento de Bhagat, saiu em outubro do ano passado e já vendeu mais de dois milhões de cópias, o que torna com muita folga o livro mais vendido do ano.

Tripathi e Bhagat têm antecedentes parecidos, tendo nascido em 1974 e iniciado suas carreiras como escritores enquanto trabalhavam para bancos de Mumbai. Nenhum tinha grande formação literária e os dois enfrentaram dificuldade para conquistar atenção, no começo. "Eu estava ciente de que o mercado editorial era muito fracionado, mas quanto ao meu primeiro livro havia unanimidade: todas as editoras o odiaram", diz Tripathi. Depois de 20 rejeições, ele decidiu bancar a publicação do livro. Críticas entusiásticas de leitores e as fortes vendas iniciais da obra lhe valeram um contrato com uma grande editora.

A ascensão dessa nova geração de escritores populares é apenas um dos mais óbvios símbolos de uma década de rápida transformação no mercado editorial indiano, de acordo com o historiador William Dalrymple, um dos organizadores do festival de Jaipur. "Quando publiquei meu primeiro livro [na Índia], em 1991, vender quatro mil cópias bastava para colocá-lo no topo da lista de best sellers, e as editoras eram bastante amadoras. Os livros tinham capas borradas, e o papel mais parecia papel higiênico", ele relembra. Agora, os livros de sucesso vendem mais de 50 mil cópias por semana, e até mesmo publicações mais especializadas vendem o bastante para permitir que seus autores se sustentem apenas com a escrita.

Três fatores explicam essa disparada, a começar pelo rápido crescimento econômico e demográfico da Índia, e o efeito dele sobre os hábitos de consumo de uma classe média em expansão. Os potenciais leitores jovens são abundantes, hoje, em um país no qual metade do 1,2 bilhão de habitantes tem menos de 25 anos. A alfabetização também avançou, de 65% a 73% nos 10 anos até 2011. As maiores editoras do mundo agora contam com subsidiárias locais, na expectativa de que essas tendências sustentem mais expansão rápida.

Segundo, e talvez mais importante, há o desenvolvimento tardio de novos gêneros para atender ao paladar da crescente audiência nacional. Os catálogos agora estão repletos de histórias de amor universitárias ou histórias de crimes situadas em ambientes de trabalho da classe média ou alta. Títulos com temas mitológicos ou religiosos também são comuns, para explorar o crescente interesse dos indianos pela história cultural de seu país. "A ficção comercial, uma década atrás, era dominada por escritores estrangeiros como Sidney Sheldon e Jeffrey Archer", diz Tripathi. "Agora é difícil encontrar um ocidental nas listas de best sellers".

Grupos de varejo online como a Amazon e sua rival local Flipkart são o terceiro fator para o boom editorial indiano. No Ocidente, esse tipo de empresa em geral é encarado com desconfiança pelo setor de livros. Na Índia, porém, mesmo as cidades grandes raramente oferecem mais que um punhado de livrarias, e o varejo de Internet, portanto, representa uma expansão do mercado.

Também não há muito espaço para que as lojas online passem rasteiras nas rivais físicas em termos de preço. Os livros populares já tendem a ser baratos, com os livros de bolso partindo de 99 rúpias (US$ 1,60), principalmente para desbancar a competição de cópias piratas vendidas por camelôs. Os varejistas da Internet também pagam as editoras mais rápido do que é o caso dos distribuidores convencionais. Esse relacionamento benigno talvez não dure, especialmente se as vendas de leitores eletrônicos crescerem. Mas por enquanto as editoras estão otimistas: "Vemos a Amazon e o Flipkart como forças positivas; eles nos ajudaram a crescer", diz Chiki Sarkar, presidente da Penguin Random House India.

A virada no mercado não deveria ser causa de surpresa. Livros de suspense e histórias românticas tendem a vender mais que os títulos sérios também em outros mercados; a Índia simplesmente deixou de ser exceção. Mas isso forçou o setor a mudanças de orientação ocasionalmente dolorosas. "As pessoas estão começando a abandonar aquela velha, e bem tola, estratégia editorial do passado, de publicar o máximo possível de romances literários, esperando que um deles ganhe o Booker Prize e que isso cubra o orçamento da editora para o ano", disse o presidente de uma grande editora, que pediu que seu nome não fosse mencionado.

Há quem conteste a ideia de que as editoras eram obcecadas por ficção cabeça e desconsideravam os gêneros populistas. Em lugar disso, argumenta VK Karthika, presidente da HarperCollins na Índia, o setor respondeu de maneira inteligente ao surgimento de novos leitores na classe média. O mercado literário mais sofisticado também registrou grandes sucessos recentemente. "The Lowland", de Jumpa Lahiri, um romance político que tem como pano de fundo a insurgência dos naxalitas, na Índia dos anos 60, é um exemplo. Na semana passada, o livro conquistou o Prêmio DSC de Literatura do Sul da Ásia, em Jaipur, e ele também consta do shortlist do Booker Prize; suas vendas são fortes tanto na Índia quanto fora do país.

A ascensão dos novos gigantes da ficção comercial indiana pode não ser inteiramente benigna, porém. "O problema é que esses números estelares cabem apenas a poucos, muito poucos, autores no topo das listas de mais vendidos, enquanto o resto do mercado luta para sobreviver", diz Karthika, apontando que poucos dos novos autores literários conseguem repetir o sucesso comercial de escritores como Lahiri ou Amitav Ghosh. "A boa escrita literária simplesmente não está conseguindo acompanhar o ritmo de crescimento do mercado".

De qualquer forma, os novos astros da literatura de entretenimento certamente atraem o público. No dia final do festival da Jaipur, outra multidão se reuniu para ouvir Bhagat, cedo na manhã. As pessoas que não conseguiram lugar para sentar assistiam em pé a 20 metros do palco, ou subiram em telhados próximos para conseguir enxergar. O escritor, muitas vezes acusado de precariedade gramática e de uma escrita tosca, exibiu vídeos de críticos atacando seu trabalhando, e zombou alegremente de seus detratores, causando gritos de aprovação na audiência.

A popularidade de escritores como ele só deve crescer, diz Bhagat, à medida que mais autores comecem a criar obras tendo em mente a audiência jovem do país. É um processo que está marcando gradualmente o fim do que ele descreve como o velho "sistema de classes" no setor editorial indiano. "Tende a existir muita gente, do lado editorial do setor, que prefere ficção literária", ele diz. "Mas do lado comercial existe pressão por mais sucesso de vendas. E é isso que conduz o mercado agora".

James Crabtree é correspondente do "Financial Times" em Mumbai

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: