Folha de S. Paulo


Dois poemas de Fabrício Marques

Totem para o Homo Zapping

Acordo João, vou à feira João, passeio João
mas João até certo ponto:
é só sair para o olho da rua e já me chamo Násser.
Conto histórias, manobro vocábulos
e logo me chamam Heródoto.
Sou Heródoto até me cansar.
Das oito às nove sou Mwaka
e na hora seguinte dou expediente como Zanchi.
Saio à esquerda à caça de frutas -de preferência vermelhas.
Descanso no parque como Chang,
sou Chang de sobreaviso.
Entro no trabalho e meus colegas me cumprimentam:
"Olá, Górki, tchau Górki".
Na hora do café a atendente me reconhece como Xerxes.
O mercado se inquieta, a Bolsa oscila ao saberem que sou Zeki.
Às seis da tarde, horário de Brasília, me despeço como Ximenes.
E, como tal, estranho os homens que atravessam a existência carregando o um só nome.
Frequento os bares contando façanhas, agora me chamo Baltazar.
O Corvette sibila no asfalto.
Luzes grátis e alegres piscam à distância,
luzes alegres e grátis acenam para mim (me chamo Raoni).

De Raoni a Quiroga é só um pulo
E num looping rodopio no baile
Mais um pouco sou Gale,
O que toca acordeom e se basta.
Em casa me recebem como Histeu,
amanhã é domingo e é floração de incertezas.
Lagartos lá fora recolhem as hesitações.
Debaixo desse teto também me conhecem como Jimmy,
mas podem me chamar de Abraão.
Até que o sonho comece e eu passe a me chamar Hades.

Não percam a conta:
Sou João Násser Heródoto Mwaka Zanchi Chang Górki Xerxes Zeki Ximenes Baltazar
/Raoni Quiroga Gale Histeu Jimmy Abraão Hades
Sou uns
Sou uns e outros a seu dispor

Alimento boto lenha
na conversa bonita
em torno do fogo da vida
Reparo as chamas
que partem sem rumo
e me chamam pelo nome

Andrés Sandoval

4 Quartetos

1.
Minha namorada muda fica deitada na cama por meses, sentindo seu corpo se desenvolver. O mamilo esquerdo cresceu um pouco mais do que o direito, anotou em seu diário. Estremece.

2.
Amarrar um cadarço pode ser banal como uma estrela da Galáxia Ana Elíptica de Sagitarius se enfiando para sempre num buraco negro. Mas é incrível como uma estrela da Galáxia Ana Elíptica de Sagitarius se enfiando para sempre num buraco negro. Ele amarra o cadarço e sai andando. Mais um passo para o irmão de Maria Fernanda. Mais uma estrela saindo de um buraco negro.

3.
Ele, o cozinheiro russo, vive há duas semanas com o coração de outra pessoa. Um cão suicida o segue por todos os cantos. Sente um sobressalto sempre que percebe o cão.

4.
O cão suicida lambe o sapato do irmão autista de Maria Fernanda. O cozinheiro russo também sente calafrios ao observar os mamilos de minha namorada muda crescendo desiguais. Embarcaram todos clandestinos em um navio, bandeira de Malta, que ninguém, nem mesmo o comandante, sabe para onde vai.

FABRÍCIO MARQUES, 49, é jornalista e poeta, autor de "A Fera Incompletude" (Dobra Editorial).

ANDRÉS SANDOVAL, 41, é artista gráfico, autor de "Socorram-me em Marrocos" (Companhia das Letras).


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