Folha de S. Paulo


Nossa França: muçulmanos contam suas histórias

Depois dos ataques terroristas em Paris, qual é a sensação de ser muçulmano na França?

Nestas entrevistas, nosso objetivo é nos colocarmos de lado e permitir que alguns muçulmanos franceses falem por si. Especialmente desde os ataques terroristas em Paris, a mídia ocidental vem falando sobre "Islã" e "muçulmanos". Mas aqueles que se pronunciam são quase todos não muçulmanos. Na França, as vozes mais ruidosas parecem pertencer a pessoas que não gostam muito dos muçulmanos: o escritor Erik Zemmour, a líder política Marine Le Pen ou o filósofo Alain Finkielkraut. Os muçulmanos franceses, diz o escritor franco-argelino Akram Belkaïd, são sempre o assunto e jamais os palestrantes. Uma das pessoas que entrevistamos aqui recorda que recentemente falou ao microfone pela primeira vez em sua vida.

É verdade que nas semanas transcorridas desde que jihadistas mataram 17 pessoas em Paris, os muçulmanos vêm sendo muito mais entrevistados do que no passado. Mas frequentemente o que lhes vem sendo solicitado é simplesmente sua reação aos ataques: são a favor ou contra aquilo que aconteceu?

Nas nossas entrevistas, muçulmanos –ou em alguns casos pessoas laicas de origem muçulmana– falam sobre os ataques e o que aconteceu depois. Falam sobre os cartuns da "Charlie Hebdo" sobre o profeta Maomé, sobre discriminação e sobre judeus. Mas também falam sobre aquilo que mais os absorve: suas vidas cotidianas. Trata-se de pessoas que trabalham ou estão procurando trabalho, criam filhos e ocasionalmente tentam se divertir.

Nossos nove entrevistados, moradores das regiões de Paris e Lyon, oferecem um conjunto de vozes muito distintas. Não podemos afirmar que são estatisticamente representativos dos mais de cinco milhões de muçulmanos franceses. (Ninguém sabe o número exato, porque a França não coleta estatísticas étnicas.) Algumas das pessoas com quem conversamos estão desempregadas. Outras –ao contrário do estereótipo sobre os muçulmanos da França– têm bons empregos e levam vidas em geral felizes. Algumas delas se sentem zangadas e, especialmente depois dos ataques terroristas, muitas têm medo.

No contexto desta reportagem, estamos apresentando essas pessoas como "muçulmanas", mas estamos cientes de que essa é apenas uma de suas identidades –e para alguns dos entrevistados, não a principal. (Uma das entrevistadas nem mesmo é muçulmana, mas um de seus avós era muçulmano não praticante e legou a ela um sobrenome norte-africano, o que é um peso e um rótulo na França de hoje.)

Um "muçulmano" pode ao mesmo tempo ser francês, argelino, trabalhador de uma funerária, morador de Lyon, cidadão, mãe de um menino de cinco anos que adora o Homem Aranha, e assim, por diante. Estamos aqui definindo as pessoas primeiro pela religião na qual nasceram: corremos o risco de rotulá-las etnicamente. Akram Belkaïd disse que compartilhava dessa hesitação mas que, por outro lado, sentia que os franceses muçulmanos têm tão poucas oportunidades de falar em público que era necessário aproveitar uma chance como essa. Por isso, entregamos os microfones a essas nove pessoas.

Taous Takouk
Nascida na França, filha de pais imigrantes da Argélia, Takouk, 35, trabalha em uma funerária em Lyon e tem dois filhos.

"Sinto-me rejeitada pelo meu país. Ao mesmo tempo, compreendo a reação dos franceses 'de origem nativa', mesmo que eu me veja como mais francesa que os franceses nativos. Meu nome de solteira é o nome de uma aldeia francesa. Acho que tive um tataravô que foi à Argélia e se casou com uma argelina. Depois, os descendentes dele passaram a viver como argelinos. Mas antes dessas duas gerações, éramos franceses de raça pura".

"No lugar onde nasci, vivíamos misturados. Nem sabíamos o que era racismo. Minha mãe não falava francês muito bem, mas isso não queria dizer que os pais dos gêmeos franceses puros que viviam lá não conversassem com ela. Vivíamos todos juntos. Não percebi a mudança chegar. Só vi quando surgiram esses idiotas que se dizem muçulmanos. Eles estão agitando as coisas, desestabilizando a estabilidade que tínhamos".

"Quando comecei a usar o véu, tinha 21 anos. Ninguém me forçou a isso. Não forçarei minha filha a fazê-lo. Ela escolherá seu caminho. Minha filha tem seis anos e quando [os ataques à 'Charlie Hebdo'] aconteceram, ela chorou e veio dormir comigo. Meu filho [de três anos] só se interessa pelo Homem Aranha".

"Expliquei à minha filha que há muçulmanos malvados, há cristãos malvados, há judeus malvados, há budistas e ateus malvados. Ela respondeu que sim, mas que estavam dizendo que o ataque havia sido realizado por muçulmanos. Respondi que eu e o pai dela éramos muçulmanos, e perguntei se ela já havia nos visto roubando, mentindo ou matando alguém. Ela chorou".

"Quando apanhei o metrô certo dia, depois do acontecido, um jovem me chamou de árabe suja, muçulmana suja, na frente de todo mundo. Como posso explicar a ele que não sou nada disso, mesmo que aquelas três pessoas tenham cometido um crime? Como posso explicar aos franceses que isso nada tem a ver com a minha religião, quando aquelas três pessoas não compreenderam o que nossa religião é? Como posso explicar essas coisas? Não há como. O que sinto hoje é raiva daquelas pessoas, e gostaria que elas viessem aqui [à funerária] para testemunhar a dor das pessoas a quem atendo e que perderam entes queridos. Eles jamais teriam feito o que fizeram. Eles destruíram o que pretendíamos para nossos filhos, para nós".

"Eu estava no metrô, com meu marido e filhos [indo à marcha pela República em 11 de janeiro], mas, porque as pessoas estavam nos olhando com cara de 'o que vocês estão fazendo aqui?', nos sentimos tão inseguros que decidimos não ir. Eu era a única mulher do vagão usando um véu. Disse ao meu marido que era melhor não irmos. Senti medo por mim, pelos meus filhos. Vi a raiva no olhar das pessoas, e não quero que meus filhos sofram essa raiva. Estamos vendo uma guerra de religião. Que mundo oferecerei aos meus filhos? Acabo de me encontrar com meu irmão, que é dentista. Ele disse que estava com medo e pensando em voltar para a Argélia. Ele tem medo por ele, tem medo por seus filhos. Estamos aterrorizados. Creio que a comunidade judaica deva estar no mesmo estado que nós. Eu gostaria de pedir às pessoas que aliviem as tensões, para que possamos voltar aos velhos e bons dias nos quais vivíamos juntos em um país que queria o melhor para nós, e para o qual queríamos o melhor".

"A mesquita fica logo ao lado, aqui. Na semana passada, alguns jovens –supostamente da Frente Nacional [partido de extrema direita]– quase derrubaram a porta. Não estou furiosa com ninguém, mas não quero ser vítima de dois ou três idiotas, não quero pagar o pato e ter meu pescoço quebrado. Noventa e cinco por cento dos muçulmanos só querem viver em paz".

Fatima Hallami
Moradora de Lyon, Hallami, 41, trabalha para uma multinacional francesa e como recepcionista em um hotel. Nascida na Argélia, ela se mudou para a França aos sete anos de idade e é cidadã francesa.

"Compramos uma casa no campo. Agora me arrependo disso. Queríamos dar aos nossos filhos uma oportunidade melhor na vida. Na primeira semana, meu filho chegou chorando em casa da escola e contou que as crianças haviam dito que sua pele tinha cor de cocô".

"Outra criança disse ao meu filho, na frente dos outros alunos e dos professores, 'seu árabe de merda, seu imundo - é assim que meus pais falam de vocês em casa'. O menino tem nove anos".

"Quando as pessoas dizem aos meus filhos que eles devem voltar ao seu país, para onde eles iriam? Eles não têm outro país. Quando isso tudo aconteceu com a 'Charlie Hebdo', meu filho perguntou se, porque eu nasci na Argélia, seria obrigada a voltar para meu país".

"Fiquei traumatizada pelo ataque à 'Charlie Hebdo'. Cresci com Cabu [um dos cartunistas da revista], no programa de TV 'Dorothy Club'. Digo aos meus filhos que o assunto não nos envolve em nada, que não é nosso problema, e que se alguém lhes perguntar, devem responder que não é assunto deles".

"O que aconteceu com a 'Charlie Hebdo' vai liberar as pessoas para que digam o que pensam. Aquilo que elas não diziam antes, agora dirão sem inibição. A França está criando jihadistas, e isso vai se voltar contra ela. O trabalho do governo não foi feito, nos subúrbios. É um círculo vicioso. A sociedade diz que não os deseja, e eles reagem dizendo que 'se não somos desejados, é assim que agiremos'. Transformarão Paris em uma Beirute, se as coisas continuarem assim".

"Por sorte, tenho a cabeça bem centrada, mas veja como nos tratam: somos animais e precisamos ser erradicados. Sou muçulmana praticante, mas imagine que eu dissesse que não sou muçulmana: continuaria a ser rejeitada por causa das minhas origens".

"Por favor parem de dizer que os muçulmanos são antissemitas. Antes de sermos judeus, antes de sermos muçulmanos, antes de sermos cristãos, somos seres humanos. Tudo que quero para meus filhos é um mundo de paz. Parece lógico para mim que qualquer mãe diga a mesma coisa".

Karamocko Cissé
Morador de Paris, nascido na França, Cissé, 23, é filho de imigrantes senegaleses e está desempregado, procurando trabalho.

"Até os ataques da semana passada, para a maioria das pessoas eu era só negro. Mas agora sofrerei ainda mais porque sou negro e muçulmano e as coisas vão ficar mais difíceis para os muçulmanos. Já começou. Posso ver na forma pela qual as pessoas agem na rua".

"Sinto-me francês porque nasci aqui, mas as coisas são diferentes se você é negro. Não é exatamente difícil. Mas coisas acontecem todos os dias. Se estou em uma loja acompanhado por um branco e o segurança decide revistar um de nós, certamente serei eu".

"Realmente preciso de emprego. Mas não sou o único. Muitos negros e árabes não conseguem encontrar emprego. Por isso eles caem na delinquência. Há muita tentação de fazê-lo, porque não existem outras opções. Se já me senti tentado? Sim, mas só tentado".

"Fui à escola apenas até o quarto ano [do secundário, aos 13 anos de idade], porque àquela altura meu pai me levou ao Senegal por um ano. Lá, eu não ia à escola. Quando voltei, estudei para ser eletricista. Não é algo de que eu realmente goste, mas queria fazer alguma coisa".

"Estou procurando trabalho há um bom tempo, mas continuo otimista. Tento me manter ocupado, acordo cedo, às oito horas. Meu irmão trabalha instalando câmeras de vigilância, e às vezes eu o ajudo, só para ter o que fazer. Conheço muita gente no meu bairro. Mas de noite fico em casa assistindo TV. Gosto de 'Hollywood Girls'. Também gosto de 'Desperate Housewives'".

"Meu apartamento tem dois quartos, e no momento quatro pessoas o dividem. Os quartos são divididos, mas o lugar onde durmo depende de quem estiver em casa. Não tenho quarto para mim. Minha mãe tem emprego como faxineira, mas meu pai não encontra trabalho na França e voltou ao Senegal dois meses atrás com meu irmão menor. Ele está sempre indo e voltando".

Samir Halbout
Nascido em Lyon, de pais argelinos, Halbout, 45, é muçulmano não praticante e está desempregado há três anos

"O que aconteceu na semana passada [os ataques terroristas], bem, não quero falar a respeito, porque não acompanhei. Só me informei por cima".

"Tenho muitas outras preocupações na cabeça, sobre minha vida pessoal, não quero agravá-las me preocupando com as notícias. Há dois meses não assisto às notícias porque estou desapontado com o sistema. São todos corruptos. Por outro lado, o sistema francês é bom. Todo mundo recebe um pouquinho para sobreviver".

"Vivo na França e tenho a impressão de um lugar que recebe bem a quem chega. Mas já não é como no passado. Há muita discriminação. A mídia da França é controlada por certos lobbies. Não vou entrar em detalhes, as pessoas dirão que sou racista... Não defendo os agressores; a religião diz que não devemos matar. Mas a zombaria precisa parar, também. Por que Diuedonné [humorista detido por um post no Twitter que parecia simpatizar com os autores do atentado] está preso? Por que a 'Charlie Hebdo' não foi presa ao publicar caricaturas de Maomé?"

Camille Hamidi
Cientista política da Universidade de Lyon, o avô paterno de Hamidi, 40, era muçulmano não praticante. Sua mãe é francesa de origem.

"Raramente encontrei problemas relacionados à minha origem. Aconteceu uma ou duas vezes na hora de alugar uma casa, por exemplo. Meu namorado na época era do Benin, e por isso os dois tínhamos nomes com jeito estrangeiro. Uma vez não conseguimos o apartamento que queríamos. Creio que se eles tivessem me visto, seria diferente".

"As pessoas vêm dizendo que seria bom que os muçulmanos saíssem à rua e declarassem sua oposição aos ataques [terroristas]. Na verdade, isso faria me sentir mais imigrante do que de hábito, e considero que essa forma de convocação seja bastante violenta. É como pedir a todos os homens que se pronunciem contra o estupro sempre que um estupro acontecer. Jamais me sinto norte-africana, mas isso de alguma maneira fez com que eu tivesse essa sensação. Na verdade, foi isso que me trouxe de volta a essa identidade".

Saïd Kebbouche
Nascido em Lyon, filho de imigrantes argelinos, Kebbouche, 56, é chefe de gabinete do prefeito de Vaulx-en-Velin, uma cidade habitada principalmente por imigrantes.

"Temos movimentos radicais, já desde os anos 90, com a ascensão do islamismo na Argélia. Dizíamos que se as pessoas fossem à mesquita, não se afirmariam, mas não percebemos que a mesquita oferece coisas muito interessantes mas também muito perigosas. Muita gente se deixa atrair por teorias da conspiração: os cartunistas da 'Charlie Hebdo' não estão mortos, o policial que foi morto com um tiro na cabeça não está morto, tudo foi falsificado. Isso circula na Internet. Algumas pessoas frágeis [por educação insuficiente] acreditam nisso.

"Algumas pessoas de Vaulx-en-Velin foram à Marcha pela República em Lyon. Acho que elas estavam lá mais para demonstrar solidariedade. Mas há motivos para que outros não tenham ido. Há quem tenha sido informado de que, ao ir, se associaria à 'Charlie' e com isso estaria insultando o profeta. Essa informação circulou via mensagem de texto. Segundo, muita gente da esquerda apelou que as pessoas não fossem, porque não deveriam apoiar o risco de políticas que restrinjam as liberdades. Terceiro, [a presença na marcha do primeiro-ministro israelense Binyamin] Netanyahu convenceu algumas pessoas a não participar. E a comunidade muçulmana está com medo. Falamos da comunidade judaica e do medo que ela sente, mas os muçulmanos também têm medo. O que é preciso saber é que, nessa região, um dia depois do ataque à 'Charlie Hebdo', mesquitas foram atacadas, um restaurante de kebabs foi atingido por tiros. Disso ao meu filho [de 20 anos] que ele não ficasse na rua até tarde, que voltasse logo para casa. Sou militante do multiculturalismo, à la française. A despeito do que aconteceu, ainda sou otimista".

Najib Hakkou
Nascido no Marrocos e morador de Paris, Hakkou, 36, é sócio da People's Drugstore, uma mistura de loja de cerveja e vinho e café de xadrez.

"Nasci no deserto do Marrocos, perto de um oásis de tamareiras. Fica em terras berberes, e muito longe de Paris. Meu pai é comerciante. Mas vim para cá por causa das artes marciais. Pratiquei todas elas, mas meu negócio é o Qwan Ki Do e as artes marciais mistas. Vim para a Europa participar de competições e acabei ficando".

"Jamais liguei para o islamismo antes de 2003. No Marrocos, todo mundo tem a mesma religião. Ela não é questão. Mas em Paris existem judeus e católicos, e isso o leva a pensar mais sobre quem você é. Foi quando comecei a realmente estudar minha cultura e a me interessar por minha fé. Mas creio que as grandes religiões sejam uma só, em essência. Só o profeta muda. O objetivo é o mesmo. Elas ensinam sobre a paz e o perdão. Por isso, o que algumas pessoas fizeram recentemente nada tem a ver com religião. Eles cresceram na França e estavam desempregados. Eram apenas vagabundos e se tornaram monstros".

"Beber não combina com a minha religião ou com o meu amor pelo esporte e o combate. Mas eu precisava de renda, e por isso me juntei a um par de amigos e abri uma loja para vender cerveja. Depois, colocamos tabuleiros de xadrez nas mesas para que as pessoas ficassem mais tempo na loja, em lugar de levar as garrafas para casa".

"O xadrez une as pessoas. Todo mundo vem aqui –jovens e velhos. E quando me apresentam uma pessoa nova, não pergunto sobre sua religião. Não faz a menor diferença".

Mohammed Belarbi
Morador de Paris, Belardi, 25, é um dos oito filhos de um casal argelino, e está desempregado; agora, vem recebendo orientação do programa de assistência Impulsion 75.

"Quero trabalhar no correio. É meu objetivo. Mas até que isso aconteça, aceito qualquer proposta de emprego. Estou procurando há cinco meses".

"Continuo a me sentir confiante. Acabo de concluir um curso para me recolocar nos trilhos, e consegui um diploma, que recebi na prefeitura. Foi a primeira vez que recebi um certificado diante de audiência, e foi a primeira vez que falei ao microfone".

"Não é impossível conseguir emprego, mas você precisa estar realmente motivado, porque se é rejeitado 15 vezes em seguida, é difícil continuar tentando".

"Também servi dois anos de sentença de prisão por delitos menores. Isso não costuma aparecer em entrevistas de emprego, e por isso não me afetou muito, até agora, e é algo que quero deixar para trás".

"O mais difícil é não ter terminado a escola. Deixei de frequentá-la porque teria de repetir um ano inteiro, e era demais. Por isso, larguei a escola e arranjei emprego como garçom perto da Torre Eiffel".

"Meu pai e mãe estão aposentados. Trabalhavam em um hotel –meu pai na manutenção e minha mãe na faxina. Nos anos 80, chegaram á França com nada. Não sabiam nem ler e escrever".

"Em comparação, eu tive todas as oportunidades –tive educação, sou alfabetizado. E além disso sou francês, diferentemente deles. Nasci aqui. Cresci aqui. Estudei aqui. Todos os meus amigos são franceses. É uma vida completamente diferente da que eles tiveram".

"No começo meus pais eram compreensivos com minha situação de emprego, mas depois de algum tempo começaram a ficar impacientes. Isso dificulta para mim ficar em casa durante o dia. Por isso saio caminhando pelo 20º arrondissement, onde moro. É uma grande mistura. Há todas as religiões que você possa imaginar, e pessoas da África, China, de toda parte. Ser religioso é normal. É como ter o mundo todo logo ali no meu bairro. E todo mundo se entende bem, além disso".

"Não me sinto discriminado por ser muçulmano. Mas é importante que as pessoas saibam que os assassinos que atacaram a redação da 'Charlie Hebdo' nada têm a ver com religião. Para mim, religião é algo que você faz todo dia, pouco a pouco. É preciso construir devagar. Aqueles caras se converteram do dia para a noite, do nada, e se tornaram fanáticos".

Fatima Hassoune
Nascida em Paris, filha de pai marroquino e mãe argelina, Hassoune, 49, é mãe solteira e está empregada. Vive no bairro parisiense de la Goutte d'Or, muito diversificado em termos étnicos.

"Eu tinha 12 anos quando meu pai me disse que eu era francesa. Meu pai trabalhava em uma fábrica. Queria que todos nós tivéssemos vidas melhores, que fôssemos à escola e estudássemos. Meus pais foram os primeiros feministas que conheci".

"Mas meu pai também me disse para nunca me esquecer de onde vim. Em casa, só falávamos árabe. Quando eu tinha 12 anos, descobri também que minha mãe não sabia falar francês".

"Meu pai era muçulmano praticante. A religião é parte de mim. Ela me ajuda a encarar dificuldades, a me sentir livre e a pertencer a algo imenso, maior que a França. Ela me oferece fundações de como respeitar e de como ser humana. Sou muçulmana. Mas também sou francesa. Acredito em liberdade e amo a 'Charlie Hebdo'. Cresci com Cabu e os outros. Adorava aquele espírito de liberdade".

"Um desenho jamais é inocente. Sempre afetará alguém. Mas não tenho problema com as pessoas falando de minha religião, ou até zombando dela. Se você acredita em liberdade, precisa aceitar que as pessoas dirão o que querem. Ninguém pode me ferir, porque sei quem eu sou e qual é minha fé".

"E ajudei a criar um comitê de pais na escola, para nos organizarmos e tentarmos fazer o melhor por nossos filhos. Meu foco é principalmente esse. Temo que os ataques sirvam de pretexto à aprovação de mais leis que restringirão nossa liberdade. Isso me causa preocupação quanto ao futuro dos meus filhos".

Erik Bleich é pesquisador sênior do Collegium de Lyon e professor de ciência política no Middlebury Colege, nos Estados Unidos. Adam Thomson é correspondente do "Financial Times" em Paris.

NOSSOS ENTREVISTADOS:

Taous Takouk:
"Estamos aterrorizados. Creio que a comunidade judaica deva estar no mesmo estado que nós".

Fatima Hallami:
Quando as pessoas dizem aos meus filhos que eles devem voltar ao seu país, para onde eles iriam?"

Karamocko Cissé
"Agora sofrerei ainda mais porque sou negro e muçulmano".

Samir Halbout
"A religião diz que não devemos matar. Mas a zombaria precisa parar, também".

Camille Hamidi
"Raramente encontrei problemas relacionados à minha origem".

Saïd Kebbouche
"A despeito do que aconteceu, ainda sou otimista".

Najib Hakkou
"Quando me apresentam uma pessoa nova, não pergunto sobre sua religião. Não faz a menor diferença".

Mohammed Belarbi
"Nasci aqui. Cresci aqui. Todos os meus amigos são franceses".

Fatima Hassoune
"Acredito em liberdade e amo a 'Charlie Hebdo'".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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