Folha de S. Paulo


Leia texto de Ayaan Hirsi Ali sobre ataque ao "Charlie Hebdo"

Depois do pavoroso massacre da quarta-feira (7 de janeiro) na redação do semanário satírico francês "Charlie Hebdo", talvez o Ocidente finalmente descarte seu arsenal de clichês inúteis usados para tentar negar a relação entre a violência e o islã radical.

Não foi um ataque cometido por um atirador do tipo "lobo solitário", mentalmente desequilibrado. Não foi um ataque "não islâmico" cometido por um grupo de criminosos: os atiradores foram ouvidos gritando que estavam vingando o profeta Maomé. E não foi um ato espontâneo. Foi planejado de modo a causar dano máximo, durante uma reunião dos jornalistas, usando armas automáticas e com um plano de fuga. O objetivo foi semear o terror, e nesse sentido o ataque funcionou.

O Ocidente está devidamente apavorado. Mas não deveria estar surpreso.

Se existe uma lição a ser tirada desse episódio tenebroso, é que o que nós acreditamos em relação ao islã realmente não vem ao caso. Esse tipo de violência, a jihad, é no que eles, os islâmicos, acreditam.

Há numerosos chamados à jihad violenta no Alcorão. Mas o Alcorão não está só. Numa parte grande demais do islã, a jihad é um conceito absolutamente moderno. A "bíblia" da jihad do século 20 é uma obra que anima muitos grupos islâmicos hoje: "The Quranic Concept of War", um livro escrito em meados dos anos 1970 pelo general paquistanês S.K. Malik. Ele argumenta que, pelo fato de o próprio Deus, Alá, ser autor de cada palavra do Alcorão, as regras de guerra contidas no Alcorão têm valor mais elevado que as regras traçadas por meros mortais.

Na análise que Malik fez da estratégia corânica, a alma humana, e não qualquer campo de batalha físico, está ao centro do conflito. A chave da vitória, ensinada por Alá por meio das campanhas militares do profeta Maomé, é atingir seu inimigo na alma dele. E a melhor maneira de golpear a alma de seu inimigo é pelo terror. O terror, escreve Malik, é "o ponto onde os meios encontram o fim". O terror, ele acrescenta, "não é um meio de impor uma decisão ao inimigo -é a decisão que queremos impor".

Exatamente como o homem que matou o cineasta holandês Theo van Gogh em 2004, os responsáveis pela chacina em Paris querem impor o terror. E, cada vez que cedemos diante de sua visão de violência religiosa justificada, nós lhes damos exatamente o que eles querem.

No islã, é pecado grave retratar visualmente o profeta Maomé ou difamá-lo de qualquer maneira. Os muçulmanos são livres para acreditar nisso, mas por que tal proibição deveria ser imposta aos não crentes? Os mórmons, nos Estados Unidos, não tentam impor a pena de morte às pessoas que escreveram e produziram "The Book of Mormon", um espetáculo da Broadway que satiriza sua fé. O islã, com 1.400 anos de história e cerca de 1,6 bilhão de fiéis, deveria ser capaz de resistir a alguns cartuns publicados num semanário satírico francês. Mas é claro que respostas letais a cartuns retratando Maomé não constituem novidade na era da jihad.

Ademais, não importa o que o Alcorão possa ensinar, nem todos os pecados podem ser considerados iguais. O Ocidente precisa insistir que os muçulmanos, especialmente os membros da diáspora muçulmana, respondam à seguinte pergunta: o que é mais ofensivo a um crente -o assassinato, tortura, escravização e atos de guerra e terrorismo cometidos hoje em nome de Maomé, ou a produção de desenhos, filmes e livros feitos para satirizar os extremistas e sua visão do que Maomé representa?

Para responder ao falecido general Malik, nossa alma, no Ocidente, consiste em sua crença na liberdade de consciência e na liberdade de expressão. A liberdade de articular nossas preocupações, a liberdade de adorar a quem quisermos ou de não termos religião -essas liberdades são a alma de nossa civilização. E é precisamente ali que os islâmicos nos atacaram. De novo.

A resposta que vamos dar a esse ataque tem importância enorme. Se adotarmos a posição de que estamos lidando com um punhado de criminosos assassinos que não têm ligação com aquilo que eles reivindicam com tanta veemência, não estaremos dando uma resposta a eles. Precisamos reconhecer que os islâmicos de hoje são movidos por uma ideologia política, uma ideologia cujas raízes estão nos textos de fundação do islã. Não podemos mais fazer de conta que é possível separar os atos dos ideais que os inspiram.

Isso seria uma mudança de atitude para o Ocidente, que tão frequentemente responde à violência jihadista com conciliação. Conciliamos com os chefes de governo muçulmanos que fazem lobby para censurar nossa imprensa, nossas universidades, nossos livros didáticos de história, nossos currículos escolares. Eles reivindicam, e nós cedemos. Conciliamos com os líderes de organizações muçulmanas em nossa sociedade. Eles pedem que não vinculemos atos de violência à religião islâmica, dizendo que sua religião é uma religião de paz, e nós cedemos.

O que recebemos em troca? Kalashnikovs no coração de Paris. Quanto mais cedemos, quanto mais nos autocensuramos, quanto mais conciliamos, mais o inimigo ousa.

Só pode haver uma resposta a este ato hediondo de jihad contra os profissionais do "Charlie Hebdo". É obrigação da mídia ocidental e dos líderes ocidentais, religiosos e leigos, proteger seus direitos mais básicos de liberdade de expressão, sob a forma de sátira ou qualquer outra. O Ocidente não deve conciliar, ele não deve ser silenciado. Precisamos enviar uma mensagem unida aos terroristas: "Sua violência não conseguirá destruir nossa alma".

AYAAN HIRSI ALI é autora de "Infiel".

Tradução de CLARA ALLAIN


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