Folha de S. Paulo


Ponto Crítico - Cinema - Deu branco na Academia

Hollywood levou mais de 50 anos para fazer seu primeiro filme com Martin Luther King Jr. como protagonista. O líder negro ganhou o Nobel da Paz em 1964, mas até agora só aparecera em documentários ou como coadjuvante.

As míseras duas indicações ao Oscar que "Selma" recebeu (filme e canção original) geraram tantas críticas à Academia de Cinema que acabaram ofuscando os indicados ao prêmio -os favoritos deste ano foram pouquíssimo vistos.

O longa, que estreia no Brasil no início de fevereiro, descreve as tumultuadas marchas de protesto entre a pequena cidade do Alabama que dá nome ao filme e a capital do Estado, Montgomery, em março de 1965, para exigir o direito ao voto da população negra local.

A primeira marcha reuniu 600 pessoas em um domingo, na saída de uma igreja batista, e faria o percurso de 86 km em uma autoestrada entre as duas cidades. Mas tropas estaduais com gás lacrimogêneo e cavalaria, unidas a moradores brancos com paus e cassetetes, partiram para cima dos manifestantes desarmados.

O que os supremacistas brancos não calcularam foi a repercussão das imagens da violência e da repressão racista, transmitidas via satélite para todo o país.

Pela TV pôde-se ver senhorinhas com roupa de missa de domingo desacordadas no asfalto depois de apanharem da polícia ou arrastadas pela cavalaria. As imagens escandalosas, como aconteceria anos depois com o napalm no Vietnã, encerraram o debate. Menos de dez dias após o "domingo sangrento", o presidente Lyndon Johnson enviou ao Congresso a Lei de Direito ao Voto, aprovada em agosto do mesmo ano.

O maior desafio da diretora Ava DuVernay, 42, em seu terceiro longa, era o de contar uma história que os americanos aprendem nas aulas de história e que quase todo o país sabe como acaba. E transformar o mítico Martin Luther King Jr., unanimidade apenas após seu assassinato, em 1968, em um ser humano, tendo que domar rachas e egos de um grande grupo de ativistas negros enquanto pressionava o presidente.

DuVernay consegue bons resultados nos dois desafios. Seu King Jr., interpretado pelo ator britânico David Oyelowo, é carismático, mas também fraqueja. Tanto sua sussurrada infidelidade quanto seu casamento em crise são abordados sem medo pela diretora, que também mostra a campanha suja do FBI, liderado por J. Edgar Hoover, contra o ativista.

Ela também soube recriar o impacto que a repressão policial causou no público de 1965, de uma maneira muito esperta. Escalou Oprah Winfrey, também produtora do filme, para interpretar a ativista Annie Lee Cooper. É impossível não ter um sobressalto ao ver a bilionária apresentadora de TV apanhando da polícia na fatídica ponte. A impecável trilha sonora é bônus.

A esnobada que o filme levou da Academia já teve múltiplas explicações. A mais recorrente seria de que a branca Hollywood não teria perdoado DuVernay por ter transformado o presidente Johnson em vilão, com King brigando com ele para passar a tal lei. Como se a meca do cinema fosse fanática por precisão histórica. Gay Talese, contudo, que cobriu a marcha para o "New York Times", declarou que o filme "não distorce" o que aconteceu.

A diretora disse que não fez um documentário e que não quis "fazer um filme sobre brancos salvadores", na linha de "Mississippi em Chamas" e "Histórias Cruzadas".

David Carr, colunista de mídia do "New York Times", escreveu que a Academia acha que já "ticou" o quadradinho do reconhecimento ao cinema negro com o Oscar do ano passado a "12 Anos de Escravidão". "Muita gente votou em '12 Anos' sem ter visto. Para muitos, foi como arrancar um dente", descreveu.

Humoristas não perdoaram o fato de que todos atores e atrizes indicados neste ano sejam brancos. "Esses Oscars estão tão brancos que qualquer indicado poderia ser o presidenciável do Partido Republicano", disse o apresentador Jimmy Fallon. "Nem o desenho Lego foi indicado, porque os bonequinhos são amarelos", brincou seu colega Seth Meyers.

Concorrendo a melhor filme e em outras cinco categorias, "American Sniper", obra patrioteira e belicista de Clint Eastwood, fez US$ 90 milhões nas bilheterias no feriadão do último fim de semana. "Selma" fez só US$ 9 milhões. A data celebrava o Dia de Martin Luther King.

RAUL JUSTE LORES, 38, é correspondente da Folha em Washington e seu texto inaugura nova seção de crítica do caderno.


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