Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Um jantar com Cartier-Bresson

Paris, 1986

Uma das noites de que me lembro com maior prazer foi aquela em que conheci Henri Cartier-Bresson, o grande fotógrafo francês. Eu estava com Sebastião Salgado e Lélia, sua mulher. Lélia me telefonara alguns dias antes para convidar-me a acompanhá-los à casa de Cartier-Bresson, em Paris, que nos receberia para jantar. O convite era irrecusável. Foi no final de novembro de 1986, quando me encontrava em Paris para uma reunião da Unesco.

Henri, como o chamam os amigos, morava na rue de Rivoli, em um apartamento com vista para o Jardin des Tuileries, ao fundo da Torre Eiffel, que naquela noite me parecia mais iluminada do que nunca. Estavam presentes na ocasião a mulher de Bresson, Martine Frank, fotógrafa; o filho deles, que saiu mais cedo pois viajava para Milão; Josef Koudelka, fotógrafo tcheco; sua mulher, americana; e Ana Fárová, curadora de fotografia, tcheca. Um saboroso menu libanês, com um toque vegetariano, nos foi servido.

Deborah Núñez/Divulgação
Dedicatória de Cartier-Bresson para Joaquim Paiva em que se lê: Para Joaquim, com minha melhor lembrança
Dedicatória de Cartier-Bresson para Joaquim Paiva em que se lê: Para Joaquim, com minha melhor lembrança

Sebastião Salgado comentou, na ocasião, que eu colecionava fotografias, e Cartier-Bresson me perguntou o que eu colecionava. Disse-lhe que principalmente fotografia brasileira contemporânea, mas que também tinha seis fotos de Diane Arbus e dez de Ansel Adams, ambos americanos. Bresson me questionou sobre o fato de eu possuir fotografias desses dois famosos fotógrafos, como a insinuar que nada via neles de especial.

Fiquei sem saber o que lhe responder, pois não imaginava que se pudesse duvidar da importância de Arbus e Adams. Arrependo-me de não lhe ter afirmado com maior ênfase a minha admiração por ambos.

A recordação que guardo de Cartier-Bresson é a de uma pessoa elegante. Não haveria como ser de outra maneira, já que a elegância é uma das marcas da sua obra fotográfica.

Presenteou-me com o livro "Henri Cartier-Bresson", edição Les Cahiers de la Photographie, com fotos e desenhos seus, no qual escreveu "À Joachim très cordialement Henri", e com o catálogo "Henri Cartier-Bresson, Zeichnung und Fotografie", que reunia desenhos e fotografias de exposição que realizara pouco antes em Mannheim, Alemanha. Dedicou este "à Joachim avec mon souvenir le meilleur Henri".

Em retribuição, dei-lhe exemplar do catálogo da exposição "A Imagem do Corpo Nu", organizada pela Funarte, no Rio, em setembro daquele ano, da qual eu era um dos oito fotógrafos convidados.

Koudelka, cujo trabalho eu já conhecia e de quem o Centre National de la Photographie, em Paris, publicaria em 1998 seu belo livro "Exils", impressionou-me por parecer muito arredio, calado, distante. Mas as pessoas podem ser assim...

A capa de "Exils" mostra um cão sobre um campo coberto de neve, na França, em 1987, fotografia na qual se sobressai o contraste entre o animal, exageradamente negro, quase uma silhueta, e a neve branca e cinza a perder-se de vista. O cão inquieto, a procurar algo com impaciência e avidez.

"Ele [Koudelka] fotografa cães magnificamente. Errantes, como ele próprio", diz Robert Delpire na introdução de "Exils", que recebeu o prêmio de melhor livro de fotografia de 1988, concedido pelo International Center of Photography de Nova York.

Anna Fárová surpreendeu-se quando lhe disse que já a conhecia, em mais de uma oportunidade, de minhas leituras fotográficas. Ela redigira a introdução do livro de fotografias do seu compatriota Josef Sudek, de autoria de Sonja Bullaty, amiga e ex-assistente do fotógrafo. Ele, que viveu em Praga, foi um poeta da imagem.

O livro é muito bonito, um dos meus preferidos. "As fotografias de Sudek, impressionantemente belas -desde as primeiras fotos dos anos 20, de uma atmosfera esfumaçada, até as posteriores, imagens mais surrealistas- parecem ainda mais notáveis à luz de sua deficiência física", lê-se na orelha do livro. Sudek perdera o braço direito durante a Primeira Guerra Mundial, lutando na Itália.

Fárová admirou-se por eu a ter lido. A surpresa dela parecia maior quando se dava conta de que o seu leitor vinha do outro lado do oceano. Apesar de tudo, o mundo da fotografia não é assim tão grande.

Terminado o jantar, Sebastião e Lélia estavam alegres e irradiando vigor. A alegria de Tião me chama a atenção, desde que a percebi melhor uma vez, quando o vi sair de sua casa parisiense, de moto, assobiando animadamente. Anos mais tarde, viria a saber que ele costuma fotografar cantarolando.

Na despedida, agradeci aos dois pela carona oferecida, mas preferi caminhar até o meu hotel do outro lado do Sena, para poder sentir o frio da noite de outono e passar pela bela ponte Alexandre 3º, embalado pelo delicioso vinho que tomara na companhia de pessoas tão especiais.

JOAQUIM PAIVA, 68, é fotógrafo e colecionador. Parte de seu acervo fica em cartaz na exposição "Limiares", no MAM Rio, até 29/3.


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