Folha de S. Paulo


Análise - Obra encanta com bom humor e tristeza

Escrever (e publicar) um diário, já passados os 80 anos de idade, não foi uma decisão fácil para o historiador Boris Fausto. Face ao imenso sofrimento causado pela morte de sua mulher, Cynira, em 2010, ele se via diante de "dois desejos contraditórios" -o de se resguardar e o de se expor. "O último acabou prevalecendo", escreve.

Que bom que tenha sido assim. Mais do que o respeitado autor de "A Revolução de 1930: História e Historiografia" (Companhia das Letras) e "História do Brasil" (Edusp), quem se revela em "O Brilho do Bronze" é um homem sem pose, sem preocupações eruditas, sem maiores envolvimentos com debates políticos e intelectuais.

É apenas um homem só. Devastado pelo luto, toma a palavra para narrar sua primeira visita "à lápide de bronze onde estão escritos o nome de Cynira e de meu pai".

Conversa com a florista, pergunta-lhe qual a planta que dura mais naquele tempo de "seca combinada com sol forte". Leva dois vasos de lírios, "um vermelho, outro laranja, com os botões ainda fechados". Não sai da loja sem pechinchar o preço -e depois se pergunta sobre a adequação de sua atitude.

O efeito desses primeiros parágrafos é irresistível -e, como Contardo Calligaris ("Ilustrada", 4/12), li o livro inteiro de um fôlego só. De um lado, acompanhamos uma sequência de fatos simples que se acumulam, discretos e secos, como as sucessivas pedras que, na tradição judaica, costuma-se colocar em cima de um túmulo.

De outro lado, a narrativa dessa primeira ida ao cemitério tem o caráter de um ritual de iniciação; cumpre ao autor informar-se sobre que tipo de flor é mais indicado, passar pela indiferença comercial da vendedora, arriscar-se a obter pequena vantagem no negócio. Acostumar-se, enfim, às atividades que se esperam de um viúvo.

Palavra que Fausto detesta, com razão. Ele se recorda de quando a utilizou, para falar de si próprio, pela primeira vez. Foi "num supermercado de cara feia, na ainda mais feia avenida Vital Brasil, para preencher uma ficha de novo cliente. Ninguém deve ter notado, mas minha mão tremeu ao confirmar a inexorável condição".

Entretanto, há ainda muitos botões fechados nas flores da primeira página. Num movimento que ele próprio considerará precipitado, marca encontro com uma "velha amiga", vendo "a chance de um entendimento além da amizade". Mas tudo "dá errado", a começar pela súbita frase de "P.", "bonita, magra de corpo, discreto vestido branco": "Eu odeio o PSDB". Os netos o aconselharão a "distinguir amigas e namoradas". Numa característica reação de humildade, humor e vida, diz: "Vou tentar".

O bom humor, em meio à permanente tristeza, está entre os maiores encantos do autor e do livro. Pronto a conversar com todo mundo, na incansável curiosidade de um historiador cada vez mais voltado para os casos do cotidiano e para o passado de sua cidade, ele anota os raciocínios estranhos e as expressões curiosas de motoristas de táxi, de alunos americanos ou mesmo de convivas das reuniões mais seletas que frequenta.

Ouvindo a conversa "de uma roda de senhoras", Fausto salva esta pérola: "Interessante, hoje em dia todo mundo tem helicóptero".

O humor, por vezes, parece ocorrer "pelas costas" do narrador, como se ele próprio não notasse (mas nota) o insólito de algumas situações. Assim, ele reserva pela internet uns dias de retiro numa pousada que lhe pareceu simpática. Quando chega, vê-se cercado de adeptos do hare krishna.

A cena parece vir diretamente de um filme com Jack Nicholson de que não gostei na época, mas que volta sempre à minha memória. Em "As Confissões de Schmidt", baseado num romance de Louis Begley, a fragilidade e os erros sem consequência de um viúvo cheio de vida e esperança são apresentados com essa mesma candura.

Da paixão corintiana às lembranças da língua ladina, falada pelos pais sefaraditas na sua infância, o homem comum e o indivíduo único se misturam em Boris Fausto. Ele de fato se expõe, tratando contudo de poupar, com o uso de iniciais, os nomes de alguns amigos a quem faz referência.

Certamente, o "FH" com quem ele joga pôquer é ninguém menos do que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Poderia ser, quem sabe, um barbeiro palmeirense na Vila Leopoldina. Há lugar para todos, em especial para os dois excelentes amigos que são seus filhos, no coração sozinho de Boris Fausto.

MARCELO COELHO, 55, é colunista da Folha.


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