Folha de S. Paulo


Canções na clave da vida mais madura

Grandes artistas encontram maneiras de visitar seu próprio passado e renová-lo

O compositor minimalista americano Terry Riley teve sua inspiração mais importante 50 anos atrás, num ônibus em San Francisco. Ele acabava de vir da Europa, onde tinha trabalhado com o trompetista de jazz Chet Baker, e buscava uma maneira de fundir música clássica e jazz que também desse espaço para a improvisação. Uma nota veio à sua cabeça, uma nota relativamente pouco interessante: o dó. Ela não queria ir embora. Ficava se repetindo em sua cabeça.

Riley chegou em casa e compôs "In C" (Em dó), um trabalho feito de 53 motivos curtos, repetidos constantemente, baseados na nota que tinha animado seu trajeto de ônibus. O trabalho o tornou famoso e ainda é uma das composições mais célebres do repertório minimalista. "Essa partitura me vale mais pedidos e mais e-mails que qualquer outra que já compus", Riley me contou dez anos atrás, quando eu o visitei na Califórnia.

Fred Prouser - 14.nov.2002/Reuters
A cantora Joni Mitchell no show beneficente
A cantora Joni Mitchell no show beneficente "Stormy Weather" que reuniu, em 2002, diversas cantoras

Mais ou menos na mesma época, nos anos 1960, a jovem cantora e compositora canadense Joni Mitchell começou a cantar nas ruas de Toronto para ganhar dinheiro dos transeuntes. Com sua voz singular, a afinação heterodoxa de seu violão e seu grau incomum de habilidade literária, ela não demorou a passar para os clubes de música folk da cidade. Mitchell deslocou-se rápido: primeiro o Michigan, depois Nova York e em seguida o sul da Califórnia, alcançando um nível ainda não igualado como cantora e compositora. Suas canções mais conhecidas são algumas das primeiras: "Both Sides Now", que revelava uma maturidade incomum, e a proto-ecológica "Big Yellow Taxi" ("Pavimentaram o paraíso e construíram um estacionamento").

Às suas diferentes maneiras, Terry Riley e Joni Mitchell são figuras culturais heroicas dos anos 1960. Aos 79 anos, Riley ainda se apresenta ao vivo ocasionalmente. Não é o caso de Joni Mitchell, que tem 71: ela vive em relativa solidão, prefere pintar a cantar e sofre da doença de Morgellons. De quando em quando, solta alguma frase espetacularmente rabugenta (foi o caso de suas observações recentes fazendo pouco caso de Bob Dylan) que desperta seus fãs. Mas estes dois artistas inovadores são recordados principalmente por suas glórias passadas. E ambos têm tido que encarar o problema de como ser lembrados, agora que estão se afastando mais e mais daquele que é considerado seu pico criativo.

Esse é um problema que afeta especialmente os artistas da era pop. Não foi um problema para Beethoven. Ninguém exigia que ele tocasse suas primeiras sinfonias quando estava em suas últimas décadas de vida. Em vez disso, Beethoven escreveu os últimos Quartetos de Cordas, obras-primas de complexidade musical que ainda hoje revolucionam seu gênero artístico. Naquela época se permitia que os artistas envelhecessem e continuassem a refinar seu trabalho. Presumia-se que o trabalho deles só ficaria mais rico, mais sábio, mais profundo. O próprio envelhecimento deles era tratado com respeito.

Mas esse luxo nunca foi dado aos artistas da era do pop: espera-se que brilhem forte por pouco tempo e depois vivam seu declínio prolongado sob os olhos do público. Uma trajetória impiedosa. Elvis estava acabado, essencialmente, aos 23. As plateias que hoje lotam as sessões do musical "Sunny Afternoon", dos Kinks, no West End londrino, mostram pouco interesse em ouvir as canções mais recentes de Ray Davies. Será que alguém espera seriamente que Paul McCartney ainda produza algum grande trabalho original? Ou Damien Hirst, que já deixou para trás seus próprios anos dourados, os 1990?

Mas os grandes artistas nunca se contentam em render-se à efemeridade. Eles encontram novas maneiras de visitar seu passado e fazer com que fique novo outra vez. E assim, voltemos a Terry Riley e Joni Mitchell. Na semana passada foi lançada uma nova apresentação em vídeo de "In C" em um formato novo e ousado que ativamente busca plateias novas para o compositor veterano. Feito em colaboração com o Tate Modern, o coletivo musical Africa Express e o The Space, o filme mostra um grupo de músicos africanos tocando a obra ao vivo na galeria.

A obra interativa -você pode escolher como vê-la-é entremeada com imagens dos músicos em Mali e também inclui obras do acervo de artistas minimalistas do Tate -Donald Judd, Josef Albers e Frank Stella. O resultado é uma exemplo de reciclagem cultural. Riley compôs "In C" para combater o que via como os excessos insensíveis da atonalidade e da complicação musical sem sentido. Essa batalha já foi ganha, em grande medida, e agora "In C" encontra ressonância nova na paisagem musical mais plural do século 21, continuando a viver e respirar.

Joni Mitchell tem sido mais intervencionista na reapresentação de seus materiais passados. A artista descreve como "curadoria" o lançamento, também na semana passada, de "Love Has Many Faces", um conjunto de quatro CDs contendo algumas de suas canções de amor mais comoventes. O subtítulo –"Um quarteto, um balé, à espera de ser dançado", numa referência à sua origem como uma música para dança que ainda não foi apresentada-o imbui de uma integridade estrutural não encontrada nas coletâneas habituais de "maiores sucessos".

Mitchell remasterizou e re-sequenciou suas canções, reunindo as várias cenas cinematográficas descritas nelas, "como uma documentarista". Ela diz que tentou limitar a coleção a um CD, para fazer o balé, mas não conseguiu. "Os quartetos não são novidade na literatura", ela observa causticamente, "mas, para as mentes abreviadas de hoje, isso pode ser um desafio." Seus fãs regulares farão bem em comprar a coleção imediatamente, nem que seja apenas por seu ensaio fluente e intransigente.

Os quatro "atos" falam das diversas fases do amor. Os três primeiros acompanham os altos e baixos, enquanto a seção final, intitulada "If You Want Me I'll Be in the Bar", se acomoda numa espécie de resignação benigna. É ali que encontramos a versão que a cantora gravou em 2000 de "Both Sides Now", cantada com a voz rachada e imbuída de todas as coisas que o pop não foi feito para compreender: o páthos, a perda e, finalmente, a aceitação.

Tradução de CLARA ALLAIN


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