Folha de S. Paulo


O cânion de US$ 6,5 milhões

A mais cara fotografia de todos os tempos não passa de um pôster cafona para um hotel fino

Fotografia não é uma arte. É uma tecnologia. Não temos desculpa para ignorar esse fato óbvio na era das câmeras digitais, quando as mais atraentes imagens de alta definição e efeitos especiais estão disponíveis para milhões de usuários. Meu iPad consegue registrar imagens panorâmicas lindas. Isso faz de mim um artista? Não. Só faz de meu tablet um excelente aparelho.

A notícia de que o fotógrafo de paisagens Peter Lik vendeu uma foto intitulada "Phantom" por US$ 6,5 milhões (cerca de R$17,4 mi), estabelecendo um novo recorde para a fotografia mais cara de todos os tempos, será vista por muitos como prova em contrário. Em nosso mundo, o dinheiro fala, e o preço absurdamente inflado que algum tolo pagou por essa "fotografia artística" será apontado como prova de que chegou a hora da fotografia como arte.

Mas observar "Phantom" com mais atenção revela exatamente o oposto. A foto recordista de preço exemplifica tudo que acontece de errado quando fotógrafos começam a se ver como artistas. É derivativa, sentimental em seu romantismo deliberado, e consequentemente um trabalho de muito mau gosto. Parece um pôster chique que você poderia encontrar emoldurado em um quarto de hotel pretensioso.

A foto foi tirada em preto e branco em Antelope Canyon, Arizona. O fato de que seja uma foto em preto e branco já deveria nos fazer hesitar. Hoje, esse uso deliberado de um estilo antiquado só pode ser visto como nostálgico e afetado, como um efeito especial "artístico". Todos temos essa opção em nossos softwares de fotografia. É, as fotos que tirei do Partenon em minhas férias de verão pareciam mesmo lindas em modo monocromático.

A foto de Lik, claro, é bonita de um jeito liso, mas beleza é barata se você apontar sua câmera para um grande fenômeno da natureza. O detalhamento monocromático do cânion é escultural o bastante, e o raio de sol que penetra em suas profundezas explica o "fantasma" do título. Mas esse raio de luz que penetra o cânion é simplesmente um aspecto natural de Antelope Canyon. Se você procurar imagens do local online, encontrará vasta gama de fotos que mostram todas o mesmo elemento. Todas são tão impressionantes quanto "Phantom". O fotógrafo não acrescentou coisa alguma de valioso ao que já estava lá. O Google está repleto de "ótimas" fotos desse deslumbrante fenômeno natural.

Alguém cometeu uma grande tolice com seu dinheiro, confundindo "pitoresco" com alta arte.

Como uma foto em cores sem pretensões artísticas, a imagem seria um valioso registro da natureza. Em lugar disso, ela pretende ser mais: aspira a ser "arte". É sua forma ostensiva de pretensão artística que a conduz ao reino do falso. Pois a ambição artística da foto é tão, mas tão derivativa... Ela deriva de quadros criados mais de um século atrás. Da mesma forma que os primeiros fotógrafos de "arte" da era vitoriana, Lik imita os clássicos para parecer clássico.

"Phantom" aspira ao sublime, àquela sensação de deslumbramento diante da natureza que foi descrita por Edmund Burke no século 18 e conduzida a suntuosos píncaros pelos pintores do século seguinte. Especialmente pintores norte-americanos, como Frederick Edwin Church e Albert Bierstadt, usavam um estilo romântico exagerado para expressar a grandeza e deslumbramento da paisagem norte-americana. Mais tarde, Georgia O'Keefe acrescentou um lado onírico e surreal à iconografia do Oeste. Cineastas, acima de todos John Ford, foram influenciados pelos pintores de paisagens norte-americanos quando colocaram o oeste nas telas.

"Phantom" surge na esteira de todas essas representações da paisagem norte-americana na arte - e indolentemente as imita. É um clichê; fácil de olhar, fácil de entender, comercial e de terceira mão.

Se essa é a mais valiosa "foto de arte" da História, Deus ajude a fotografia artística. Pois essa criação oca e pretensiosa expõe a ilusão que atrai a todos nós quando estamos tendo um bom dia com uma boa câmera - a fantasia de que tirar uma foto é a mesma coisa que criar uma obra de arte.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: