Folha de S. Paulo


Jihadistas bebendo Red Bull, civis famintos, crucificações e ataques aéreos

Ativistas revelam que a elite do EI vive em relativo luxo e os civis enfrentam pobreza, fome, inflação e falta de energia

Os pressionados habitantes de Raqqa, cidade que o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EI) declarou sua capital, estão sofrendo fome generalizada, inflação paralisante, falta crônica de energia e uma pobreza tão aguda que foi preciso estabelecer cozinhas públicas para alimentar os famintos.

Já que jornalistas, locais ou estrangeiros, não são capazes de operar dentro da sexta maior cidade da Síria, corajosos ativistas locais deram ao "Observer" um relato detalhado quanto à vida sob o regime totalitário dos jihadistas, oferecendo um raro vislumbre da vida cotidiana na cidade.

O depoimento deles revela a evolução de uma comunidade brutalmente dividida entre privilegiados e despossuídos, com os membros do EI desfrutando de serviços bem equipados, entre os quais hospitais "privados", e de um padrão de vida relativamente alto, enquanto muitos dos moradores locais enfrentam dificuldades para garantir o básico.

Reuters - 30.jun.2014
Parada militar em Raqqa em junho deste ano
Parada militar em Raqqa em junho deste ano

Crucificações de oponentes do EI foram realizadas na Praça Paraíso, em Raqqa, bem como frequentes decapitações e punições com chibatadas por delitos às vezes mínimos, como o de fumar um cigarro. Abu Ibrahim Raqqawi, fundador de uma rede de ativistas chamada "Raqqa Está Sendo Silenciosamente Massacrada", disse ao "Observer" que "o EI mata muita gente, vemos muitas execuções, muitas decapitações. Vi cerca de cinco pessoas crucificadas na cidade. As pessoas agora chamam a Praça Paraíso de Praça Inferno".

Enquanto isso, a população se vê sujeita a um pesadelo diário por conta dos ataques aéreos matinais realizados pelas formas armadas sírias, seguidos por ataques aéreos da coalizão no comecinho da noite.

Quando aviões de combate das forças do presidente Bashar Assad mataram dezenas de moradores da cidade, na semana passada, tomando repetidamente por alvo áreas muito povoadas da cidade, o EI e suas baterias antiaéreas e sistemas de mísseis não dispararam nem um tiro. A falta de reação enraiveceu ainda mais os habitantes de Raqqa com relação aos extremistas, de acordo com testemunhas.

"As pessoas estão ficando muito zangadas porque o EI não dispara seus foguetes contra os aviões, e se limita a assistir à morte das pessoas atacadas. Temos uma situação que envolve ataques aéreos sírios no começo do dia e ataques aéreos da coalizão mais tarde, e nos períodos intermediários éo EI que está no controle, matando pessoas. "Todos estão cansados e e com medo", disse Raqqawi.

As informações dos ativistas que operam a Raqqa Está Sendo Silenciosamente Massacrada oferecem percepções sobre como os jihadistas pretendem operar seu califado embrionário, que até o momento tem seis milhões de pessoas sob seu governo no norte da Síria e do Iraque.

Raqqawi retrata uma economia disfuncional, controlada por uma elite intocável sob cujo controle os extremistas conseguem viver muito bem mas milhares de civis enfrentam dificuldade para obter alimentos básicos. O preço do pão subiu em 150%, para 250 libras sírias (o equivalente a 94 pence ou R$ 3,80), de setembro para cá. Enquanto isso, os combatentes do EI se vangloriam de beber Red Bull, que também custa 250 libras sírias por lata, e de receber estipêndios da ordem de mais de 30 mil libras sírias ao mês, cerca de duas vezes mais que o salário médio dos sírios dessa região do país.

A despeito da crescente disparidade de padrão de vida entre os moradores de Raqqa e o EI –que ao que se informa fatura mais de US$ 3 milhões por dia com vendas de petróleo no mercado negro–, os extremistas não parecem interessados em distribuir sua riqueza a fim de conquistar a adesão da população local.

"Temos algo aqui que chamamos de cozinha de assistência, para servir comida às pessoas carentes, e ela oferece uma refeição ao dia aos seus frequentadores. Hoje há mais de mil famílias recorrendo a esse serviço. O EI não dá coisa alguma a essa cozinha", disse Raqqawi.

A água também se tornou mercadoria preciosa, com algumas famílias forçadas a obtê-las direto do rio Eufrates, de acordo com Raqqawi, depois que ataques aéreos da coalizão destruíram as refinarias de petróleo e os geradores que abasteciam as bombas de água da cidade. Raqqawi disse que os ataques aéreos norte-americanos que começaram a atingir a cidade dois meses atrás terminaram por afetar adversamente a população civil, e não apenas o EI, seu suposto alvo.

Falando de Raqqa na sexta-feira, Raqqawi disse que "a cidade está sofrendo de pobreza e doença. Um grande problema é que todos os preços dentro da cidade subiram demais, especialmente depois dos ataques aéreos da coalizão. Não há eletricidade, e todo mundo depende totalmente de geradores", ele afirmou.

"Quando os ataques aéreos da coalizão destruíram as refinarias de petróleo dentro da cidade, os preços triplicaram. O dinheiro que as pessoas têm não basta para comprar comida, que se tornou muito cara", disse.
Em contraste, ele disse, o EI vive em relativo luxo. Raqqawi afirmou que os geradores do movimento estão sempre ligados, enquanto no resto da cidade só há energia por entre três e cinco horas diárias.

Além disso, hospitais exclusivos para o EI contam com os melhores médicos e o equipamento mais moderno, enquanto os civis frequentemente morrem por falta de tratamento adequado. "As pessoas estão morrendo de ferimentos porque não há equipamento médico, suprimentos, médicos, paramédicos e ambulâncias. O EI tem hospitais próprios que não admitem civis. Esses hospitais oferecem os melhores tratamentos médicos, os melhores doutores".

Ativistas, protegidos em casas seguras espalhadas pela cidade, usam conversas cifradas online para trocar informações e escapam às atenções dos grupos de hackers empregados pelo EI.

Entre seus apelos mais recentes à comunidade internacional está o pedido de que a coalizão liderada pelos Estados Unidos impeça os ataques aéreos do governo sírio por meio da imposição de uma zona de restrição de voo no espaço aéreo da cidade.

Na terça-feira, os ataques de aviões militares sírios atingiram pelo menos nove locais em Raqqa, entre os quais um movimentado mercado próximo do museu da cidade, e áreas civis densamente povoadas.

O Observatório Sírio dos Direitos Humanos, que opera do Reino Unido, disse que os ataques aéreos mataram pelo menos 95 pessoas, entre as quais três mulheres e quatro crianças.

Raqqawi se referiu aos ataques aéreos da terça-feira como os mais sangrentos desde o início da revolução de 2011, descrevendo que dois ônibus foram apanhados por um deles. Todos os passageiros morreram nos veículos em chamas. O número de mortes superou as 200, ele disse, com 170 cadáveres conduzidos ao último hospital público que resta em Raqqa. Outros 50 corpos estavam queimados a ponto de serem irreconhecíveis.

Raqqawi afirmou que ninguém sabe ao certo quantos moradores locais foram executados pelo EI, mas informou que as mortes por doença estão em alta, ainda que ele não esteja ciente de nenhum caso de morte por fome, apesar de a pobreza estar se tornando questão séria.

A população de Raqqa ainda supera as 200 mil pessoas, a despeito dos ataques aéreos, e se acredita que o EI conte com uma força residual de três mil a cinco mil combatentes na cidade, se bem que os números variem a depender da intensidade dos combates em outras porções do califado.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: