Folha de S. Paulo


Jeff Chang e a defesa do multiculturalismo

RESUMO Jornalista autor de livros que ampliaram o debate da cultura hip-hop nos EUA nos anos 2000 é hoje voz ativa no movimento multiculturalista no país. Professor em Stanford e diretor de instituto universitário que promove a diversidade nas artes, diz que declínio da maioria branca anuncia uma nova sociedade.

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Jeff Chang prefere não dizer o ano em que nasceu. Poderia ser vaidade. Mas vindo do atual diretor-executivo do Institute for Diversity in the Arts (IDA, ou instituto pela diversidade nas artes) da Universidade Stanford, o motivo é outro: todo seu discurso vai contra a categorização. Sem idade, sem raça, sem cor de pele, sem gênero, sem classe. A luta atual do movimento multiculturalista nos EUA, do qual ele é uma das vozes mais eloquentes, é para ultrapassar o gueto em favor da individualidade.

É sobre isso que Chang fala em seu mais recente livro, "Who We Be - The Colorization of America", lançado no mês passado. Depois de ter estudado em Berkeley e na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), Chang chegou a Stanford já como diretor do IDA em 2011, mas também dá aulas de estudos comparados de raça e etnia.

Foi em 2005 que o jornalista, cofundador das revistas "ColorLines" e "CultureStr/ke", alcançou um público novo e mais amplo: com a publicação de seu primeiro livro, "Can't Stop Won't Stop - A History of the Hip-Hop Generation" (Não pode parar não vai parar - Uma história da geração hip-hop, de 2005), ganhou projeção nacional e muitos prêmios, como o American Book Award, da Fundação Columbia.

O livro levou o debate sobre a cultura hip-hop a outro patamar, que Chang não parou de aprofundar em artigos e em mais um livro, "Total Chaos: The Art & Aesthetics of Hip-Hop" (Caos total: a arte e a estética do hip-hop, de 2007).

Então veio 2008, e as apostas eram de que a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro nos EUA, traria mudança em todas as esferas, inclusive na relação entre raça e produção artística.

"Who We Be - The Colorization of America" (algo como Quem ser nós - A colorização da América) revisa 50 anos de produção cultural, de 1963 a 2013, sob o ponto de vista da questão racial e de sua representação e antecipa o debate do que se está chamando nos EUA de "revolução demográfica", a estimativa de que, em 2042, os habitantes do país serão majoritariamente não brancos.

Entre as muitas referências artísticas e histórias de bastidores que pontuam o livro, está a do cartunista Morrie Turner, a quem o autor dedica o primeiro capítulo. O artista, morto no início deste ano, foi o criador de um dos quadrinhos mais lidos nos anos 60 nos EUA: "Wee Pals", uma "gangue" de crianças de todas as cores e origens. Para Chang, "Wee Pals" foi a produção artística pioneira em representar os EUA como um ideal de multiculturalismo.

Em meio à turnê de lançamento do livro, Jeff Chang respondeu por e-mail à entrevista abaixo.

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Folha - A previsão demográfica de que os EUA se tornarão, a partir de 2042, um país majoritariamente "não branco" traz que tipo de questão para o debate sobre raça e discriminação no país?
Jeff Chang - A ideia de os EUA se transformarem em um país de "minoria majoritária" tem assustado alguns setores do país. O escritor Gregory Rodriguez tem chamado esse sentimento de "crise de ansiedade branca". Eu acho que não devemos temer o futuro. Se seremos todos minoria, temos apenas de considerar o que significa ser maioria. É a oportunidade de repensar como uma democracia multirracial pode ser, de fato.

Você diz que a discussão sobre relações raciais nos EUA não está aberta, e por isso tudo anda muito lentamente nesse campo. Por que esse diálogo ainda é tão difícil?
Nos EUA, o debate parece originar-se em um estado de "inocência racial" no qual a história não intercedeu. Mas todos sabemos que houve um genocídio dos nativos americanos, que a escravidão aconteceu, que se acredita que os imigrantes não brancos não deveriam ser legalizados (ou ter direito a voto). O histórico privilégio branco deixou sua herança nas desigualdades raciais e culturais, e muita gente ainda investe energia em preservar tais privilégios. Quando negamos a história, tornamo-nos incapazes de uma discussão profunda que possa transformar a maneira como pensamos e como vivemos com os outros.

Por que a eleição de Obama, em 2008, parece não ter mudado o cenário das relações raciais nos EUA?
A eleição de Obama assustou parte das elites naquele ano. Ela significou a possibilidade de termos um presidente extremamente popular, que poderia ter tanta força como Franklin Delano Roosevelt, no sentido de garantir uma maioria eleitoral de longo prazo e conseguir aprovar uma legislação liberal.

Depois de sua eleição, parte da direita começou a trazer de volta o que chamamos de "cultural wars" (guerras culturais) dos anos 1980, quando os medos e inseguranças econômicas da classe média branca são deslocados para medos e inseguranças em relação aos imigrantes e negros. Essas guerras são uma competição entre narrativas: a história de uma grande América que se sente ameaçada contra a história de uma América cheia de novas esperanças.

Vimos as tentativas de reconciliação racial do presidente serem silenciadas. Quando ele tentou, por exemplo, em 2009, posicionar-se contra a discriminação racial no caso da prisão indevida do acadêmico negro Henry Louis Gates Jr. -abordado na porta de sua própria casa por policiais brancos -, foi severamente punido pela mídia americana.

Casos como o de Michael Brown, em Ferguson, e Tamir Rice, em Cleveland, ambos mortos por policiais, se repetem. O que, nesses casos, a cultura, e seu espaço de produção e consumo, podem fazer? Políticas de ação afirmativa ainda são úteis e necessárias?
Sim. Momentos terríveis como este são justamente a hora exata para que a cultura intervenha. Esta é a mensagem que tenho ouvido, muito alta, vindo de ativistas, organizações e artistas, tanto de Ferguson como do resto do país. O impacto da destruição das políticas de ação afirmativa resultou em uma geração perdida de líderes negros, latinos e americanos nativos. No ano passado, na UCLA, estudantes deram voz a essa questão de uma maneira muito contundente em um vídeo, "33", sobre o pequeno número de estudantes não brancos matriculados no curso de direito da universidade. E esse número -33 estudantes negros em um total de 1.100- só caiu desde que eu estudei lá, em meados de 1990. O impacto é devastador para toda a sociedade. Significa que estamos perdendo suas vozes na construção de nossa democracia, e que ficamos ainda mais para trás na tentativa de construir uma sociedade multirracial, em que todos estejamos representados.

O que defende o movimento multiculturalista e como seria a sociedade multicultural nos EUA?
Até os anos 1970, a ideia dominante era de que a sociedade só poderia tolerar uma cultura americana: a do ideal anglo-saxão branco, masculino e da religião protestante. Esperava-se que aqueles que não tinham essa formação ou interesse se assimilassem à "norma". A ideia de que os EUA são um país multicultural é muito recente: nasceu em meados dos anos 1970, quando artistas não brancos e a contracultura começaram a desafiar esse ideal do "melting pot". As guerras culturais nos EUA acontecem na competição entre narrativas: a história de uma grande América que se sente ameaçada de ficar perdida para o passado contra a história de uma América que emerge cheia de novas esperanças. E essas histórias acabam servindo a fins políticos. Um lado quer a restauração, o outro demanda transformação.

Quais são, em sua opinião, os artistas americanos, que transitam nesse território, que devemos prestar atenção?
A lista é grande, mas é preciso prestar atenção em Glenn Ligon, Coco Fusco, YAMS Collective, Kara Walker. E também em atores como W. Kamau Bell, Hari Kondaboly e Margaret Cho.

E quem são os opositores ao movimento multiculturalista nos EUA?
Há muitas vozes contra o multiculturalismo, como a National Association of Scholars (associação nacional de acadêmicos) e até intelectuais considerados liberais, como Walter Benn Michaels e Todd Gitlin. Os críticos de direita defendem a preservação das tradições europeias porque acreditam que elas são a base da democracia americana. E os de esquerda acham que discutir as questões de raça ou de gênero -que eles denominam "política de identidade"- retira a atenção das questões de classe.

Minha posição é de que os três eixos (raça, gênero, classe) não podem ser separados e que aqueles da esquerda que vão contra os multiculturalistas são ingênuos e acabam sendo usados pela (e a favor da) direita e pelos discursos que induzem ao medo racial, que ganham, assim, terreno nas classes médias e na população branca mais progressista.

Qual é sua função à frente do IDA, em Stanford, e quais são os objetivos da organização?
Trabalhamos na interseção entre arte e justiça social. Acreditamos que os artistas têm um papel importante nos movimentos sociais e apoiamos aqueles cujo trabalho se mostra progressista em termos estéticos e políticos.

No lançamento de seu livro, na universidade, em outubro, você foi aclamado por alunos e colegas como um pop star. Você se considera mais um militante ou um pesquisador nas áreas em que atua?
Eu amo ensinar e formar os mais jovens, amo fazer minhas pesquisas e amo também construir a ponte entre tudo isso e o mundo real. Acho que o engajamento é a forma mais nobre de prestar serviço que à sociedade. Aspiro a isso.

Quando você era estudante em Berkeley, nos anos 1980, já participava do movimento a favor do multiculturalismo. O que pode nos contar sobre o período?
Foi um tempo de polarizações radicais nos EUA -um tempo sobre o qual há muito pouca coisa escrita. Então escrever este livro foi também uma maneira de documentar meus dias de juventude. Foi ótimo poder jogar fora algumas certezas sobre aquele período e lançar um olhar crítico sobre ele..

Você, como Barack Obama, nasceu no Havaí. O arquipélago, de alguma forma, é o espelho do que será a nação de "Who We Be"?
Sim e não. Há muita desigualdade no Havaí, e ela apenas parece diferente da desigualdade que existe aqui no continente. Algumas vezes, a discriminação é muito mais uma questão em torno dos tons de pele e sobre a divisão existente entre nativos e colonos (talvez ali estejamos mais perto da questão como acho que deve ser no Brasil). Mas sim, eu e o presidente Obama viemos de famílias que vinham se casando fora de suas comunidades por gerações, e talvez elas tenham nos dado um modelo, ou vários, de multiculturalismo.

No final do livro, você afirma que escrevê-lo lhe deu a oportunidade de encontrar sua própria identidade. Por que essa questão ainda o preocupa, como indivíduo?
Quero ser otimista quanto à nação e ao mundo que meus filhos e seus contemporâneos vão herdar de nós. Acredito que a forma como agimos enquanto maioria é uma questão tão importante quanto como lidamos com a crise do meio ambiente. Não quero que meus netos nasçam em um mundo onde as desigualdades raciais tenham se calcificado. Se for assim, será um lugar ainda mais instável do que o que vemos hoje.

IZABELA MOI, 44, é jornalista e bolsista do programa J.S. Knight da Universidade Stanford.


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