Folha de S. Paulo


Um trecho de "Paraíso Reconquistado", de John Milton

SOBRE O TEXTO Este trecho corresponde aos versos 1 a 108 do livro 4 de "Paraíso Reconquistado" -é a primeira vez que se traduz ao português a continuação de "Paraíso Perdido", obra mais famosa do inglês John Milton. O volume sai no dia 25 pela Editora de Cultura e estará à venda só na Livraria Cultura.

Reprodução

(Satã tenta o Messias com uma imagem de Roma e a sugestão de que, sendo filho de Deus, deveria tomar o poder secular.)

Perplexo e perturbado pela falha,
Estancou, sem resposta, o Tentador,
Sem esperança, a fraude revelada,
Bem como sua persuasão retórica
Da língua que ganhara tanto de Eva,
Pouco agora; perdida: Eva era Eva;
Este é superior ao prepotente
Que se precipitou em comparar
Sua própria força contra a qual lutava:
Mas, feito um homem de imbatíveis dolos
Que ao ver-se inesperadamente ao chão,
Quer por salvar seu nome, ou por desprezo,
Inda insiste em tentar quem o frustrara,
Não cessa e mais aumenta sua vergonha;
Ou como enxame em tempo de vindima
Que cerca o doce mosto que se prensa
E, expulso, inda retorna a zumbizar;
Ou poderosas ondas contra as rochas,
Que mesmo em só tremor, de novo assaltam,
Em vão, pois findam em escuma e bolhas;
Assim Satã, repulsa e mais repulsa
Sofre e em silêncio vergonhoso acaba,
Mas nem desesperado ele desiste
E em vão persiste sendo inoportuno.
Levou o Salvador à parte oeste
Do alto monte, que lá pudesse ver
Outra planície, longa, mas não larga;
Banhada pelo mar do sul e, ao norte,
Se estende uma cadeia de montanhas
Que protegia a messe e o lar dos homens
Do gélido Setentrião; no meio,
Cortada por um rio em cujas margens
Havia uma Cidade Imperial,
Com torres, templos, altos e orgulhosos,
Em sete montes, bela de palácios,
Teatros, banhos, aquedutos, pórticos,
Troféus, estátuas, arcos do triunfo,
Jardins e bosques que ele pôde ver
Parado acima desses altos montes:
Que estranha paralaxe, ou truque óptico
Multiplicou-se pelo ar, que lente
De telescópio, é caso curioso:
Por fim, o Tentador rompe o silêncio:
"A Cidade que viste não é outra
Senão Roma, Rainha sobre a Terra,
Renomada e tão rica pelo espólio
Doutras nações; ali o Capitólio,
Ergue acima de todos sua fronte
Sobre a Rocha Tarpeia, cidadela
Intocável, e ali o Palatino,
Palácio Imperial, imenso, excelsa
Estrutura de nobres arquitetos,
Áureas ameias, longe já notáveis,
Com torretas, terraços e pináculos.
E muitos belos edifícios, quase
Casas dos deuses (fiz perfeito o meu
Aéreo microscópio); podes vê-las
Dentro e fora, pilares e telhados,
Tudo esculpido pela mão de artífices
Em cedro, mármore, marfim, ou ouro.
Lança aos portões o teu olhar e vê
Que imenso fluxo avança, entra e sai:
Pretores e procônsules que partem
Ou tornam das províncias, com suas togas;
Lictores, fasces, marcas do poder;
Coortes, legiões, equestres turmas e alas;
Ou embaixadas de regiões remotas,
Com várias vestes pela Via Emília,
Ou Ápia: algumas vêm do extremo sul,
De Siena, onde a sombra tem dois lados,
Meroé, ilha nilótica; e a oeste
Vêm do reino de Boco, em Mauritânia;
Dentre eles vêm os reis da Pártia e da Ásia,
Da Índia, do dourado Quersoneso
E da longínqua ilha Taprobana,
Alvos turbantes cobrem faces negras;
Do oeste da Bretanha, Gália e Gades;
Norte, os citas, sarmácios e germanos
Vêm de além do Danúbio, junto ao Táurico.
Todas nações estão aos pés de Roma,
Aos pés do imperador, que tem domínio
De amplo império, riquezas e poder,
Civilidade em modos, artes, armas,
E um bom renome, até superior
Aos dos partos; além desses dois tronos,
O resto é bárbaro, nem vale ver,
Que se divide entre a ralé dos reis;
Ao que te expus, expostos foram todos
Reinos do mundo, e toda sua glória.
O Imperador é velho e não tem filhos,
Velho e lascivo, longe está de Roma,
Em Cápria, uma pequena e forte ilha
Às margens da Campânia, pois lá foi
Gozar a sós de uma hórrida luxúria,
E entregou a um perverso favorito
A República, embora até suspeite
Que esse odiado a tudo odeia. Fácil
A ti, dotado de virtudes régias,
Que apareceste com teus nobres feitos,
Será tirar o monstro de seu trono,
Hoje um chiqueiro, e ascender ao posto
Um povo vencedor, livre do jugo!
Com minha ajuda, sim; pois me foi dado
O poder, e por lei to posso dar.
Nada queiras, senão o mundo inteiro,
Nada, senão o topo, sem o topo
Nunca terás assento, nunca o trono
De Davi, pouco importa a profecia."

JOHN MILTON (1608-74) foi um poeta britânico, autor de "Paraíso Perdido".

ADRIANO SCANDOLARA, 25, é poeta e tradutor, autor de "Lira de Lixo" (Patuá).

BIANCA DAVANZO, 25, é tradutora.

GUILHERME GONTIJO FLORES, 30, poeta, professor de língua e literatura latina na UFPR, premiado com o Jabuti 2014 pela tradução de "Anatomia da Melancolia", de Robert Burton.

RODRIGO TADEU GONÇALVES, 33, tradutor, leciona língua e literatura latina da UFPR.

VINICIUS FERREIRA BARTH, 28, tradutor, edita a revista virtual de arte e cultura R.Nott Magazine (rnottmagazine.com).

WILLIAM BLAKE (1757-1827) poeta e pintor britânico.


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