Folha de S. Paulo


Para o islã radical, fé conduz ao progresso

O avanço do secularismo nos EUA também tem, ao contrário do que talvez se imagine, paralelos nos países de cultura islâmica. Graças a fenômenos como o surgimento do Estado Islâmico (EI), porém, a face mais visível da religiosidade no Oriente Médio é o fortalecimento do extremismo.

O EI emerge de um contexto em que a política se entrelaça com a religião: a desestabilização causada pela invasão dos EUA ao Iraque em 2003. Os militantes da facção aproveitaram a retirada das tropas americanas do Iraque, os tumultos sectários e a guerra civil na Síria para concentrar entre esses dois países seu aparato "estatal".

O surgimento de organizações que defendem um retorno às origens da fé, como o autodeclarado califado islâmico, é uma resposta relativamente recente ao avanço do secularismo e, em paralelo, ao declínio econômico regional.

Ao constatarem que seu mundo se tornava atrasado em relação à Europa, pensadores islâmicos no final do século 19 e início do 20 se propuseram uma questão que poderia ser assim resumida: "Afinal, onde nós, uma vez líderes no mundo, erramos?".

Filósofos como Jamal al-Din al-Afghani responderam que o problema residia no sufocamento da ciência pela religião e que seria necessário separá-los. Mas para outras linhas de pensamento, em cuja trama se insere hoje o Estado Islâmico, a resposta é: o verdadeiro mal é o secularismo.

Said Qutb, autor lido por Osama bin Laden, vê um mundo em estado de "jahiliya" (o termo árabe para o período de "ignorância" anterior ao islã) do qual terá de ser liberado. As ideias de retorno aos fundamentos são conhecidas como "salafismo" -do árabe "salaf", que significa "ancestral".

A ideia, que pode soar estranha ao considerarmos o caminho ocidental de separação entre Estado e religião, se torna mais compreensível se posta em perspectiva: esses muçulmanos radicais têm como referência ideal o século 7, quando o islã surgiu na península Arábica e, em poucas décadas, tomou o norte da África e a península Ibérica, derrubando impérios.

Pensadores radicais dirão que seu mundo só voltará a prosperar se conseguir retornar às bases desse período "utópico".

Tal projeto se solidifica no EI com a imposição de leis rígidas, como a proibição à música, a separação de homens e mulheres e a criminalização do álcool.

O califa autodeclarado Abu Bakr al-Baghdadi, líder da milícia extremista, chefia uma estrutura que justifica, com base em interpretações teológicas, a escravidão e a decapitação de inimigos.

Nada disso significa, porém, que "islamismo" equivalha a "posições extremas". Muçulmanos moderados, que são a maioria, repudiam publicamente o EI, e dezenas de seus líderes religiosos assinaram, em setembro, uma carta aberta a Baghdadi com argumentos teológicos contra o califado.

O documento desmonta o fanatismo ao lembrar que o islã proíbe "ignorar a realidade contemporânea" e que "a escravidão foi abolida por consenso", além de frisar que a fé veta "converter por força", "negar direitos a mulheres" -e "matar inocentes".

DIOGO BERCITO, 26, é jornalista e mantém os blogs Mundialíssimo e Orientalíssimo, no site da Folha.


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