Folha de S. Paulo


Magna Carta: A "maior exportação" inglesa enfim recebe reconhecimento

Por séculos, a importância da rendição do rei João em 1215 foi subestimada. Mas seu 800º aniversário, no ano que vem, será diferente

Pode se preparar para uma enxurrada de historiadores televisivos caminhando pelas pradarias do Surrey e gesticulando diante das câmeras. Começam a se cristalizar os planos para a celebração suntuosa –incluindo copiosos documentários de rádio e TV e numerosos livros, e até mesmo um carro alegórico no carnaval de Notting Hill– de um aniversário que muita gente espera venha a valer reconhecimento, ainda que tardio, a uma das criações mais grandiosas, e mais desconsideradas, da Inglaterra.

Em 15 de junho de 1215, à margem do rio Tâmisa em Runnymede, o rei João, que estava sob forte pressão, se reuniu com os barões da Inglaterra que haviam apoiado sua fracassada guerra contra a França e desejavam limitar seus poderes. O monarca enfraquecido não tinha muita escolha a não ser testemunhar a formalização do que algumas pessoas veem como o documento mais importante do mundo, um texto que, ao menos simbolicamente, estabeleceu um novo relacionamento entre um rei e seus súditos.

Com isso, a Carta Magna original, 3,5 mil palavras em latim grafadas em um pergaminho de pele bovina, surgiu, e sua relevância duradoura é confirmada pelos muitos processos judiciais em que é citada até hoje. Mas embora os advogados cultuem a Carta Magna por deitar as fundações da democracia moderna, da defesa da liberdade pessoal e da proteção de liberdades em todo o planeta, o Reino Unido em geral a ignora. O 750º aniversário passou sem grandes festa, em 1965. Os planos para comemorar seu 700º aniversário foram abandonados por conta da Primeira Guerra Mundial. Um apelo ao governo por um feriado nacional para celebrar a data no ano que vem, que contava com o apoio de muitos parlamentares, foi rejeitado.

Ben Satnsall-10.set.2014/AFP
A Magna Carta, de 1297
A Magna Carta, de 1297

A história como disciplina acadêmica reluta há muito em prestar homenagem à data. A batalha de Bouvines, em 1214, o confronto decisivo no qual a Inglaterra se viu forçada a admitir a perda da maioria de suas terras na França, um momento central no enfraquecimento da posição do rei João, foi descrita como "a mais importante batalha da história sobre a qual ninguém ouviu falar". E até recentemente a Carta Magna ocupava posição apenas periférica nos currículos de história. Mesmo David Cameron, quando questionado a respeito em um programa de entrevistas norte-americano, não foi capaz de dizer o que Magna Carta significa em inglês (significa "Grande Carta").

Runnymede também parece pouco entusiasmada quanto ao seu lugar na história. O único memorial à Carta Magna no parque do National Trust que abarca o prado em que ela foi assinada, hoje cruzado por uma estrada movimentada, é um pequeno abrigo de teto curvo construído em 1957 pela Ordem dos Advogados dos Estados Unidos. Dois sinais explicam que os peregrinos ingleses que se estabeleceram nos Estados Unidos levaram com eles uma cópia da Carta Magna, que ela ajudou os norte-americanos na formulação de sua constituição, e que o documento foi usado por Nancy Astor em sua campanha pelo sufrágio universal e por William Wilberforce e Abraham Lincoln para defender a abolição da escravatura.

A ausência de um memorial mais digno da ocasião no Reino Unido é surpreendente. Aparentemente o National Trust temia que colocar Runnymede no mapa cultural causasse problemas de trânsito.

"Há 20 anos tento entender por que isso acontece (a ausência de um centro de recepção a visitantes)", diz Sir Robert Worcester, cuja família tem raízes na era dos peregrinos. Ele descreve a Carta Magna como "a maior exportação da Inglaterra", e descreve os principais preceitos que ela legou ao mundo: "a legalidade processual; o princípio de que ninguém está acima da lei; o de que postergar a justiça significa negá-la; o de que tributação requer representação; a liberdade da Igreja na Inglaterra".

Worcester e os demais entusiastas esperam que 2015 seja o ano que em a Carta Magna receberá o aniversário que merece. Dezenas de milhões de libras de verba da loteria nacional britânica estão sendo investidos nos locais associados à Carta Magna na Inglaterra. Sites foram criados, moedas de ouro e selos comemorativos foram lançados; os sinos das igrejas tocarão em celebração; uma série de palestras em todo o mundo, começando por uma fala de Neil MacGregor, diretor do Museu Britânico, enfatizarão a importância duradoura do documento; a Biblioteca Britânica realizará a maior exposição de sua história; canções e poemas especiais foram encomendados; a Carta Magna vai ter até presença no desfile de carros alegóricos do carnaval de Notting Hill. A criação de um centro de recepção a visitantes perto de Runnymede também pode se tornar realidade. Worcester fala com otimismo sobre a assinatura de um acordo com a Real Universidade de Holloway, que fica muito perto do local.

Mas atrair o interesse do público continua a ser um desafio. "Ao contrário de outros artefatos, que podem ser um pouco mais sexy, ela consiste de um pergaminho coberto de palavras bem ininteligíveis escritas em latim", reconhece Sandra Matthews-Marsh, presidente da Visit Kent, a organização que promove o turismo em um condado inglês ávido por ganhar destaque no mapa turístico da Carta Magna que acaba de ser lançado.
"Mas os designers e curadores de exposições que apontamos estão muito empolgados com a tarefa. A função deles é dar vida à coisa; não só contar a história de por que ela é importante, mas demonstrar sua relevância hoje", ela afirma.

E a tarefa precisa mesmo ser realizada. Na quinta-feira passada, uma família britânica de origem asiática, formada por pai, mãe, avó e três filhas, estava caminhando pelo prado de Runnymede e parou diante do memorial instalado pela Associação dos Advogados dos Estados Unidos. "O que você quer dizer com 'é só isso?'", rosnou a mãe diante de uma observação sussurrada por uma das meninas.

A família leu as placas e tirou selfies por alguns minutos. Depois caminharam de volta ao estacionamento próximo e à sala de chá do National Trust que existe ao lado dele. Do lado de lá do prado se ouvia o rugido do tráfego; os motoristas claramente não estavam cientes de que estavam passando sem olhar por um pedaço da história.

CARTA MAGNA? AFINAL, O QUE É ISSO?

Já ouvi falar dela - aquele documento em latim escrito nem sei bem quando. David Cameron não falou sobre isso em uma entrevista, certa vez?
Sim. Foi forçado a admitir que não sabia o que quer dizer "Magna Carta", em inglês.

Idiota. E o que quer dizer, então?
Grande carta.

Que impressionante.
Pois é. Originalmente redigida em 1215, ela foi o primeiro documento que os súditos do rei da Inglaterra o forçaram a aceitar, em busca de proteção de seus privilégios e de limitação das prerrogativas do rei.

O primeiro?
Sim. Mas foi anulada pelo Papa nove semanas mais tarde. O texto foi alterado em 1216, 1217 e 1225. Em 1297, foi confirmado como lei, na Inglaterra, mas a maior parte de suas cláusulas foi revogada.

A maior parte?
A cláusula 1, que garante a liberdade da Igreja inglesa; a cláusula 9, que garante as "liberdades ancestrais" da City de Londres; e a cláusula 29, que garante a legalidade processual [due process], continuam em vigor.

Due Process parece nome de uma banda pop dos anos 80.
Essa é a cláusula que deitou as fundações das liberdades de que hoje desfrutamos.

E o que ela diz, mesmo?
"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de sua propriedade, ou tornado fora da lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra. A ninguém venderemos, e a ninguém recusaremos ou postergaremos, direito ou justiça".

Quer dizer que precisamos agradecer à Carta Magna por restringir os poderes de nossos monarcas?
Na época ela teve pouco efeito em termos de restringir poderes monárquicos, mas o simbolismo foi importante. Ela amparava aqueles que se opunham ao rei durante a guerra civil inglesa e ajudou a estabelecer o Estado constitucional de direito em todo o mundo de fala inglesa.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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