Folha de S. Paulo


Exposição nos EUA discute o papel da morte na cultura popular

Miriam Murphy, uma conservadora de figurinos, estava debruçada outro dia sobre uma mesa no Metropolitan Museum of Art, costurando lantejoulas que tinham se desprendido de um vestido de luto, feito de chiffon de seda, que tinha visto a luz do dia pela última vez quando a rainha Alexandra da Inglaterra o usou em 1902.

Juntamente com outras peças de vestuário elegantes e sombrias do século 19 e início do século 20, o vestido estava sendo aprontado com muito carinho para "reviver" como parte da exposição de outono do museu, que tem o título irreverente de "Death Becomes Her: A Century of Mourning Attire" (A morte lhe cai bem -um século de trajes de luto).

O fato de a exposição ter sido aberta na terça-feira, pouco antes do Halloween, foi mero acaso, disse o curador Harold Koda. A ideia surgiu devido ao interesse dele por silhuetas de moda extremas, mas seu foco mudou quando o Met adquiriu uma seleção de trajes de luto do Brooklyn Museum.

"Mas uma exposição sobre roupas de luto seria apropriada em qualquer época", comentou Koda. "Olhando desde o ponto de vista superficial, as roupas de luto são chiquérrimas."

Na verdade, o luto e a melancolia parecem estar passando por um revival, ocupando posição central ou no segundo plano de várias exposições atuais em museus, em programas de TV, no cinema, nas belas-artes e na música, conferindo um quê de glamour a um tópico que a maioria das pessoas preferiria ignorar. Essa aura talvez seja parte da razão pela qual muitos americanos nos últimos meses suspenderam o medo habitual da morte para curtir um leve flerte com ela.

"Há um clima soturno, um senso de melancolia que percorre a cultura e a moda", comentou Shelby Lee Walsh, presidente e diretora de pesquisas do site Trend Hunter. Para ela, talvez seja o reconhecimento de que "a vida não é tão maravilhosa quanto a vemos retratada em nossas contas de Instagram".

Um clima taciturno penetrou na mostra de obras de Robert Gober que está em cartaz no Museum of Modern Art, que incorpora partes de corpos e evoca o espectro da Aids. Um tom semelhante é perceptível no Morbid Anatomy Museum, no Brooklyn, que vem atraindo curiosos desde a abertura, no verão passado, de sua exposição de coroas de flores funerárias, arte capilar vitoriana, retratos post-mortem e parafernálias ligadas ao luto. Apesar de ocupar uma antiga boate em Gowanus, lugar que para muitos nova-iorquinos é muito distante, o museu vem atraindo um público considerável.

"Para surpresa minha, o público não diminuiu", comentou a diretora criativa do museu, Joanna Ebenstein. Ela contou que nos fins de semana a mostra, que deve ficar até o final do ano, recebe cerca de cem visitantes por dia.

Algumas pessoas veem a exposição e querem conversar, contou a diretora, para extrapolar a noção da morte como algo exótico ou estranho e conhecer eras anteriores, quando ela era um conceito que fazia parte do dia a dia. Evan Michelson, curadora assistente da mostra, disse que, nos tempos vitorianos, não era considerado estranho ver exposta numa casa uma coroa funerária feita com cabelos do membro da família que tinha morrido. Máscaras mortuárias, fotografia de espíritos, arte e bijuterias feitas de cabelos, disse Michelson, "eram coisas que não eram vistas como anormais no século 19".

O fascínio suscitado pela morte e tudo que a acompanha tende a ser cíclico. "Faz parte de um movimento cultural de minha geração", comentou Ebenstein, 42 anos. Hoje, disse ela, as pessoas não relutam tanto quanto seus pais em examinar o outro lado da vida. E a cultura jovem está fazendo o máximo para tirar a morte da sombra, conferindo à perspectiva de extinção uma atração estranha ou até mesmo, se isso é possível, certo "sex appeal".

Raramente o espectro da morte terá parecido tão sedutor quando no álbum e faixa de sucesso "Born to Die", de Lana Del Rey. O vídeo fantasmagórico mostra a cantora como Ofélia, uma imagem de melancolia bela. A faixa foi seguida por "Ultraviolence", que liderou a parada Billboard 200 quando foi lançada, no verão americano passado. Nesse vídeo, Del Rey aparece como noiva, com buquê feito de lírios e sem noivo.

"Ela é uma espécie de fada soturna", comentou Walsh, do Trend Hunter. "Ser taciturna faz parte da imagem dela." Escrevendo recentemente no serviço noticioso online AlterNet, Lynn Stuart Parramore vinculou a capacidade de Del Rey de atrair público a "o senso geracional de que a América perdeu seu rumo".

A tristeza e o pavor estão visceralmente presentes também em programas de TV como "The Knick", o seriado recente da Cinemax dirigido por Steven Soderbergh em que procedimentos médicos são realizados numa sala de cirurgia tão mal iluminada e assustadora quanto um túmulo. "The Leftovers", sobre o luto prolongado de uma cidade que chora a morte de seus habitantes misteriosamente "desaparecidos", atraiu interesse suficiente no verão passado para ser renovado por uma segunda temporada. Mas, insistiu Walsh, é Lana Del Rey quem levou a morte e o luto para o mainstream.

Não que a "ajuda" dela fosse imprescindível. No sucesso de bilheteria do verão "A Culpa É Das Estrelas", sobre dois jovens amantes com câncer, um falso funeral desempenha papel central. Esse filme foi seguido por "Se Eu Ficar", baseado num romance para o público adulto jovem cuja heroína teen, em coma e deitada num leito de hospital, torna a perspectiva de morrer mais atraente que assustadora. E como poderia deixar de sê-lo, quando o "Fim" é representado por um lindo jardim iluminado?

Uma versão estetizada da morte seduz os colecionadores da obra de Vladimir Kanevsky, em cujas mãos flores de porcelana e imagens de crânios e frutas decompostas adquirem um tom atraente, um brilho antinatural que levou o designer de interiores Howard Slatkin a se derramar em elogios na edição de novembro da "Town and Country", dizendo que os trabalhos do artista são "a perfeição aprimorada".

A moda e a mortalidade se entremeiam há anos nas passarelas. A coleção de Gareth Puigh para a primavera de 2015, mostrada em Nova York em setembro, é uma espécie de hino à morbidez; sua passarela é povoada por modelos pálidas, usando mortalhas com capuz ou vestidos negros soturnos dos quais se arrastam flores mortas. Na Givenchy, Riccardo Tisci trouxe de volta o estilo gótico, sob a forma de vestidos retos funéreos, alguns cobertos de crucifixos, evocando um cemitério caindo aos pedaços.

O blog e loja online Gloomth & the Cult of Melancholy, voltado a culturas outsiders como meninas góticas e Lolitas japonesas, vem recebendo em média mil visitas por dia, segundo sua fundadora, Taeden Hall. Ela explicou que seus produtos, como o vestido de luto "Victoria", com duas camadas, e uma variação com saia em forma de sino chamada "Sorro" (pesar), são apropriados para bonecas vitorianas, garotas modernas de luto e pessoas que se enxergam como desajustadas.

"Estes figurinos encarnam a melancolia de quem se sente fora de sintonia com o mundo", disse Hall, explicando que seu site visa mulheres na faixa dos 18 aos 35 anos, "pessoas que querem um gostinho de algo mais excêntrico em suas vidas".

Algumas delas provavelmente farão parte do público de "Death Becomes Her" no Met, que promete ser ao mesmo tempo estiloso e sombrio. Feitos de crepe e quase invariavelmente pretos -e, em alguns casos, incluindo véus pesados–, os figurinos são, mesmo assim, tão opulentos quanto permitiam os costumes da época.

"Eles incorporam todos os detalhes da moda da época", disse Jessica Regan, a curadora assistente da exposição, apontando para um vestido de 1870 com saia em pregas, laço de crepe nas costas e rosetas de crepe na cintura.

Esses vestidos certamente serviam para expressar solenidade. "Mas, ao conferir a eles um contexto social e o visual da conformidade, a pessoa mostrava que estava de luto, mas ainda assim estava sintonizada com o mundo maior da moda", disse Regan. "É preciso fazer um esforço. Você ainda faz parte da sociedade."

Ainda faz parte da sociedade se você está entre as pessoas que ficam. Afinal, em filmes como "Se Eu Ficar", a morte é mostrada como uma alternativa possivelmente maravilhosa. É por isso que, nas cenas finais, quando o alter ego fantasmagórico da heroína caminha repetidas vezes em direção à luz, você tende a se perguntar se ela vai se dar ao trabalho de sair do coma e continuar a viver.

E alguma parte de você espera que não.

Tradução de CLARA ALLAIN


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