Folha de S. Paulo


Como um bairro boêmio de Roma está lutando para salvar sua alma artística

As janelas da padaria do século 19 na Via Natale del Grande, nº 7, foram abertas pela primeira vez em anos, e o velho balcão está torto no meio do salão. Ainda vai demorar para o aroma de pão assando espalhar-se pelo ar -fios elétricos estão pendurados do teto, e os jovens envolvidos na faxina do lugar têm muitas coisas do que cuidar. Mas alguma coisa está no ar: esperança, com certeza, e talvez um leve toque de desafio.

"Este lugar vai ser chamado o Pequeno Cine America", diz o estudante de literatura Valerio Curcio, 22 anos. "Decidimos levar a batalha adiante, a partir do lado de fora."

Nos últimos dois anos, desde que um grupo de estudantes secundaristas e universitários de Roma iniciou uma ocupação com a finalidade de recuperar prédios abandonados no centro da cidade e combater a especulação imobiliária, essa batalha estava acontecendo a partir do prédio ao lado: o Cine America, uma joia da arquitetura italiana dos anos 1950 que, em sua época áurea, recebia plateias grandes e as deixava maravilhadas com seu telhado que podia ser afastado durante o intervalo para abrir o espaço para o céu.

Mas a ocupação foi suspensa este mês quando a polícia despejou os ocupadores do cinema. O fechamento do Cine America foi repudiado pelos próprios ocupantes e por algumas das figuras mais famosas do cinema italiano contemporâneo, especialmente Paolo Sorrentino, cujo filme premiado com o Oscar "A Grande Beleza" celebrou a beleza de Roma, mas também sua decadência.

Mas a expressão de protesto que talvez seja a mais importante veio do próprio quintal da ocupação: o bairro de Trastevere, antes boêmio mas que hoje está sendo aburguesado rapidamente. Muitos de seus moradores aprenderam a apreciar os "ragazzi" (jovens) do Cine America -não apenas porque sabem se comportar, diferentemente de alguns dos frequentadores que lotam o bairro à noite, mas porque devolveram ao bairro algo de sua alma.

Piero Iacozzili, do açougue Iacozzilli, na mesma rua que o cinema, diz que os jovens levaram "um pouco de ar fresco" a esse bairro antes de classe trabalhadora do lado oeste do Tibre. "E também certos valores de Trastevere que se perderam. Sou contra o conceito geral de 'ocupação'", ele comenta. "Mas esses jovens são realmente ótimos. Torço para que encontrem uma solução."

Quando a ocupação começou, em novembro de 2012, o Cine América, fundado em 1956, já estava fechado havia mais de dez anos. Desde 2004, tinha sido objeto de conflito entre seu novo proprietário particular e aqueles para quem o prédio deveria conservar sua função cultural.

O impasse se arrastou durante anos, enquanto crescia a oposição aos planos do proprietário de converter o América em um prédio de apartamentos com estacionamento no subsolo. Então, de repente, a ocupação começou, e nasceu algo totalmente diferente: um ponto de encontro para a comunidade, onde partidas do Roma FC eram mostradas na telona, estudantes podiam ir estudar, moradores locais podiam debater, mães podiam levar seus bebês (era proibido fumar no local) e havia noites de cinema.

E não eram noites de cinema qualquer. Paolo Sorrentino foi ao América apresentar uma sessão de "La Dolce Vida". Nanni Moretti, diretor de "Habemus Papam", apresentou seu próprio filme "Caro Diário". Os grandes nomes do mundo das artes italiano ficaram impressionados com o idealismo, profissionalismo e dinamismo que emanavam do cinema reaberto.

"Eles são ótimos", diz o renomado fotógrafo Marco Delogu, passando ao lado do forno na casa do Nº 7. "Em um período pós-Berlusconi em que as pessoas só pensam em dinheiro, dinheiro, dinheiro, eles trazem liberdade e um senso de cultura."

Delogu diz que gosta ainda mais dos ocupantes porque eles fizeram tudo isso sem qualquer pretensão ou esnobismo. É verdade: o uniforme da ocupação é uma camiseta preta simples com um pequeno logotipo do Cine America. Não há um único penteado descolado à vista. Talvez essa ausência de atitude tenha ajudado os jovens a ter sucesso em algo que Curcio descreve como "um novo modelo de ocupação para todos". Seu cinema de visual novo mostrou ser inclusivo e conquistou o apoio de setores cuja adesão não era garantida. "No início eu estava cético, mas eles fizeram um trabalho muito bom", diz o arquiteto Guido Hermanin de Reichenfeld, presidente de uma associação de moradores de Trastevere. "Conseguiram envolver muitas pessoas: famílias, estudantes universitários, estudantes de ginásio." A única coisa que Reichenfeld não aprovou foram as partidas do Roma: ele é torcedor do time rival, o Lazio.

No início deste ano, as perspectivas do Cine America pareciam boas. Em julho o ministro da Cultura, Dario Franceschini, anunciou que, devido à autenticação de mosaicos valiosos da década de 1950, o prédio deveria ser reconhecido por seu valor como patrimônio artístico e histórico. No Festival de Cinema de Veneza o ministro, citando o caso do cinema America, anunciou uma campanha para salvar os cinemas históricos do país, muitos dos quais foram fechados nos últimos anos ou convertidos em lojas, salões de bingo ou prédios de apartamentos.

E então, na manhã de 3 de setembro, um ativista chamado Carocci, a única pessoa que estava dormindo no America naquela noite, foi acordado por "um barulhão: bum, bum, bum". Era a polícia. Ele correu para escrever no perfil de Facebook da ocupação: "Socorro, despejo! Venham para cá, rápido!". Em pouco tempo, participantes da ocupação e moradores irados se reuniram para protestar. "Eles estavam gritando: 'Deixem os meninos ficar!'", recorda Carocci, 22 anos. Mas foi em vão. O despejo pedido pelo dono do imóvel seguiu adiante.

Longe de se deixarem desanimar, entretanto, os ativistas encontraram uma nova base, mudando-se para o imóvel ao lado, a antiga padaria, cujos donos os estão deixando usar o local de graça. Na área em volta da Via Natale del Grande, uma rua que sai da praça San Cosimato, é difícil encontrar qualquer pessoa que tenha uma crítica a fazer ao grupo de cerca de 30 adolescentes e universitários.

"A grande maioria dos moradores de Trastevere está do lado deles", disse um corretor imobiliário que não quis ser identificado, possivelmente porque, como admitiu, aprova a ocupação ilegal. "Sabe quem os moradores não aprovam? Os recém-chegados: os políticos, os jornalistas, os 'radicais chiques'." E a "destruição" do bairro. O corretor apresenta uma lista dos problemas da área: a agitação e o barulho dos bares à noite, multidões de turistas, restaurantes da moda, preços dos imóveis que "chegam à loucura" -por exemplo, quitinetes alugadas a estudantes americanos visitantes por €700 e €400 mil a €500 mil por um apartamento de sala e quarto. Nascido nas proximidades, o corretor hoje mora em Monteverde, uma área de Roma mais a oeste e mais distante da agitação. "Adoro Trasteverde, mas o bairro está acabado", ele lamenta.

Para Curcio e Carocci, contudo, está longe de acabado. A luta deles apenas começou. Com a ajuda dos moradores locais, do mundo do cinema e, possivelmente, da prefeitura de Roma, eles querem comprar o Cine America.

"Na Inglaterra existe uma coisa muito famosa: clubes de futebol que pertencem aos torcedores", diz Curcio. "Nós queremos criar um cinema que pertença aos seus frequentadores. Queremos que pelo menos uma parte deste cinema seja adquirida pelas pessoas do bairro, com cotas. Se você tiver contribuído com €10 mil ou com €20 mil, terá direito a voto. Desse modo o bairro poderá retomar o cinema."

Ele quer que a atitude prevalecente em relação à política da vida urbana mude da passividade para a ação coletiva concreta. "Fazer as pessoas entender que com a coletivização, a luta cotidiana e a organização é possível transformar e governar o nosso bairro é uma coisa incrível."

Tradução de CLARA ALLAIN


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