Folha de S. Paulo


Leia três poemas inéditos de Felipe Fortuna

Os três poemas abaixo fazem parte do livro "O Mundo à Solta" (Topbooks) que o poeta e diplomata carioca Felipe Fortuna lança no fim do mês. O volume tem apresentação de Silviano Santiago.

O TERRORISTA EM SEU JARDIM

Como se pensa na flor
seu pistilo ornado, arquitetônico
no fundo carmim iridescente
e pequenos estames feito fagulhas,
logo se pensa no terrorista
seu corpo encapsulado e sólido
a antera pronta para explodir
e o cinturão de fios e caixas pretas
para estilhaçar os ossos torácicos
e arrancar os braços em torno
na estação de metrô, no entra e sai
de quem precisava chegar.

Então se pensa no jardim
de nenhuma flor, de plantas apenas
que fazem cair pelas paredes serosas
com pelos para baixo, impossíveis de escalar,
ou plantas viscosas que tornam lentos
os batimentos e os passos,
ou ainda as que súbito sugam
e passam a digerir.
O terrorista renasce aqui
sem estátua, sem saudação
a imaginar o paraíso ou a vitória,
suas mãos dormentes, encarniçadas.

*

SAMIR

Aquele garoto que vê
o mercado ficar cheio
se chama Samir. Ele crê
em Deus de todas as maneiras:
como pássaro brilhante, como água
fresca entre pedras, como o assobio
do vento deserto.
Mas agora desmembrado
e a cabeça confundida aos estilhaços
Samir não vê.
Sobre o mercado
a bomba apontou o inimigo
e levou quem mais podia:
desenrolou-se um tapete até o meio
subitamente a conversa cessou
e os órgãos vitais se espalharam
no bazar já tão repleto,
algumas peças em liquidação.
A mãe de Samir entra
entre ruínas e vê.
Vê fumaça, vê escombros
o apocalipse ali, louvado Alá,
aos gritos ela vê, e vê
que os corpos são dos outros
não são pedaços de Samir.

A perna de Samir
pode estar sob duas colunas
e a mãe não vê e grita
por isso também.
O filho
que corria no mercado
entre algibeiras guitarras narguilés
frutas panos jóias e sedas
paralisou os negócios,
morreu junto com os outros
sem demanda e sem oferta
sem saber, em meio à guerra,
como e por que barganhar.

*

ILHA NA ILHA

Sei que o prisioneiro lentamente passa
perto das cercas.
Não sei bem se ele caminha:
daqui, parece que vai empurrado
sob o sol mais forte, mais aparente
do que o seu uniforme.
Não importa: está vendado.
Sei que está
aguilhoado, as pernas se tocam
mal se abrem
passo a passo.
Sei que está manietado
também, e os braços se juntam
com som de galhos secos.

Sei muito do que está acontecendo.

Mas não sei se há visões piores
dentro do sono ou durante o dia
sobre o que sei.
Pois enquanto queimo petróleo e desmato
e enxoto o ar para chegar noutra cidade,
existe Guantánamo, à beira
da praia paralítica.
Posso estar
dirigindo, fumando ou exagerando
algumas proezas muito antigas
(as mais recentes são milagres a explicar)
e Guantánamo aguarda
com susto.

Nenhuma rotina adormece, e nem cabe
reclamar das dores faveladas
e dos acidentes.
Derrama-se a tinta
sobre um dia melhor, e sei
que Guantánamo escorre em todas as direções.


Endereço da página: