Folha de S. Paulo


"Arte", poema de Régis Bonvicino

É o relevo das luzes de uma torre
no dia seguinte

é o mendigo que, mão aberta, não pede esmola

é um MSF -menino sem futuro-
amarrado no obelisco
depois de roubar um mendigo

é um faquir com fobia de pregos

é a antena da mosca furando um pneu
de um Simca Chambord, vermelho,
num velho anúncio realista

é uma poltrona bubble chair sobre a faixa amarela
da estrada

é um cartaz vintage da atriz Hedy Lammarr em Êxtase

é um fantoche da Guerra Fria com um tumbleweed alojado na cabeça
é um soldado da ajuda humanitária
muçulmanas más sem nicabes

é um imigrante boliviano demolindo
a marretadas
as vigas de um edifício

é também um sociólogo de binóculo, num navio,
disfarçando a cegueira

é um relógio sobre uma lápide

um escravo
orelha roxa, passos lentos
foge da fazenda Bom Retiro

é o conflito econômico progressista
um foie gras de pato selvagem

é um colchão com lençol largado na calçada

é um menino negro que passa, apressado,
pela calçada da porta da igreja do Pari,
camiseta regata do Spurs,
de repente se lembra faz o sinal da cruz

é um enfestador fuzilado por um garoto
num ponto de ônibus à tarde

é um rolo de fio elétrico amarrado ao pé de um poste

um casal se pega, de dia, sob o luminoso Star India
desligado

é um camelo pronunciando palavras assassinas

é um cara algemado, disparando contra a própria cabeça

é um artista se entregando à polícia

Nunca

RÉGIS BONVICINO, 59, poeta, diretor da revista eletrônica "Sibila" (sibila.com.br), é autor de, entre outros, "Até Agora" (Imesp, 2010) e "Estado Crítico" (Hedra, 2013), foi finalista na categoria poesia do Prêmio Jabuti deste ano.

NUNCA, como é conhecido Francisco Rodrigues, 31, é artista plástico.


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