Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Intérprete de Foucault

Rio de Janeiro, 1974

Quarenta anos atrás, em 1974, voltei ao Brasil, aos 16 anos, vindo da Europa, após uma ausência de cinco anos. Acompanhara meu pai, diplomata, nomeado na Bélgica, e retornava agora ao Rio de Janeiro para morar na casa de tios e terminar o ainda chamado curso colegial.

Louco para voltar a ser brasileiro, habituei-me logo a uma agradável rotina, com outro ritmo escolar, novos amigos e muitas horas passadas em meu quarto, imerso nas leituras que me apaixonavam.

Ouvia regularmente a rádio Mundial, popular na época, e, numa tarde, poucos meses após minha chegada, escutei por acaso um locutor anunciar que o professor Michel "Focalt", do Collège de France, daria dois dias depois uma palestra na faculdade de Medicina da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no então para mim remoto bairro do Fundão.

Acervo pessoal
Bilhete de Michel Foucault a Pedro Corrêa do Lago, após conferência no Rio, em 1974
Bilhete de Michel Foucault a Pedro Corrêa do Lago, após conferência no Rio, em 1974

Quase não acreditei. Para mim e meus colegas do Liceu Francês de Bruxelas, Foucault (pois era dele mesmo que se tratava) parecia um semideus. A vida intelectual de língua francesa do início da década de 1970 era ainda dominada pelos grandes mestres do pensamento, ou "maîtres à penser", na expressão consagrada.

Em 1974, faltavam ainda 6 anos para que Sartre morresse e mais de 20 para o suicídio de Deleuze. Barthes e Derrida estavam em plena produção, e Althusser ainda não havia cometido o irreparável, matando a mulher num surto mal explicado. Foucault, que tinha na época pouco menos de 50 anos, destacava-se, pois era mais acessível para nós adolescentes, e sua "História da Loucura" tivera grande impacto sobre mim e meus amigos europeus.

Organizei-me para comparecer à conferência, a despeito da longa viagem que teria de fazer e de não ter nem ao menos a certeza de poder assisti-lo, por não ser aluno universitário.

Cheguei meia hora antes e presenciei imediatamente uma situação de crise: um dos tradutores simultâneos havia faltado e a profissional que restara dizia não dar conta sozinha de uma hora e meia de palestra, precisando necessariamente alternar a cada meia hora com outro tradutor.

Como meu francês ainda estava tinindo, após cinco anos de imersão total na língua, ousei oferecer-me para tentar a tal meia hora de tradução simultânea.

Deixei claro que não tinha qualquer experiência, mas que o português era minha língua materna e que dominava o francês.

No desespero, os organizadores da conferência aceitaram.

Não me lembro exatamente o assunto da fala. Sei que era ligado às praticas médicas do século 19, mas a atenção exclusiva que tive de manter no fluxo das palavras nos fones de ouvido prejudicou minha compreensão do sentido maior da palestra.

Acho que acabou correndo bem, foi pelo menos o que me disseram. Devo ter gaguejado bastante, mas só me lembro de um tropeço maior na palavra "charnier", cujo significado eu conhecia, mas na hora não me ocorreu a tradução exata de "vala comum". Na pressa, acabei optando por algo como "cova onde se enterram juntos vários cadáveres" e torci para que a frase fizesse sentido.

Após a conferência, aproximei-me de Foucault, que soubera do ocorrido e agradeceu-me gentilmente o esforço amador na emergência. Num cartão branco escreveu: "Você diz tão bem em português o que eu digo tão mal em francês que eu gostaria de lhe perguntar como se diz obrigado em português".

Fiquei lisonjeado com aquele momento fugaz de participação na vida de uma daquelas figuras que minha escolaridade francesa me ensinara a admirar, mas que sempre me pareceram distantes e inatingíveis.
Despedi-me dos alunos e dos organizadores, a quem nem sequer disse meu nome. Voltei para casa feliz por juntar esse episódio às então poucas lembranças de uma vida ainda curta.

PEDRO CORRÊA DO LAGO, 56, curador, bibliófilo e colecionador, é fundador da editora Capivara. É autor de 20 livros sobre manuscritos e fotografia e arte brasileiras.


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