Folha de S. Paulo


Diário de La Paz - O satélite indígena e as urbes do altiplano

Numa manhã cinza do inverno de 1781, La Paz despertou assustada. Durante a noite anterior, armara-se um cerco ao seu redor, formado por um exército indígena de mais de 40 mil pessoas. Seu líder, o chefe aymara Túpac Katari pedia o fim da dominação espanhola e resistiu até que tropas imperiais viajassem desde Buenos Aires e Lima para reprimir o levante e executá-lo.

Quando quis lançar a Bolívia na corrida espacial, em 2013, o também líder indígena Evo Morales, reeleito no domingo passado pela segunda vez, lembrou-se de seu herói inspirador. Chama-se Túpac Katari o primeiro satélite boliviano, em operação desde março deste ano, melhorando a cobertura de celular entre comunidades afastadas e levando wi-fi para a rede de transporte público. "O satélite aumentou nossa autoestima, quem disse que a Bolívia não pode ir ao espaço? Katari tinha um pensamento visionário, disse que voltaria e seria milhares. Aconteceu", diz o vendedor Oscar Huyhua.

A oposição a Morales alertou para as irregularidades nos gastos com o satélite, feito sem licitação e com dinheiro público, em conjunto com a China. Poucos deram bola. Fragmentada em quatro candidatos, a oposição ficou a quase 40 pontos percentuais de Morales. Nas últimas semanas, a imagem de Katari, com sua colorida bandeira e vestimenta, associada ao satélite, estampava folhetos de campanha, cartazes e muros da capital.

Vivendo um bom momento econômico (perspectiva de crescimento do PIB neste ano de 5%, segundo o FMI), a Bolívia vê suas grandes cidades receberem mais atenção estrangeira. Em La Paz, bairros como Calacoto e Sopocachi reúnem bistrôs franceses, casas de sushi e bares alemães. Enquanto isso, em El Alto, antiga cidade tipicamente operária, indígenas que enriqueceram nos últimos anos erguem os coloridos "cholets", edifícios de três a quatro andares, com salão de festas e visual inspirado na cultura tiwanaku.

BOOM À BOLIVIANA

Primeiro veio Edmundo Paz-Soldán ("Norte", Companhia das Letras), escritor de 47 anos, nascido em Cochabamba, hoje professor da Universidade de Cornell (EUA), que integrou a geração McOndo, defensora, na década de 1990, do rompimento com os escritores latino-americanos do chamado "boom dos anos 70".

O questionamento do realismo mágico levou escritores bolivianos a substituí-lo pelo realismo urbano, o ensaio jornalístico, a linguagem cinematográfica e a ficção memorialística. A essas linhas se filiam autores como Maximiliano Barrientos (lançado no Brasil pela coleção Otra Língua, da Rocco), Rodrigo Hasbún e Liliana Colanzi. Em "Bolívia a Toda Costa - Crônicas de un País de Ficción", volume organizado por Fernando Barrientos (ed. El Cuervo) estão alguns dos novos autores bolivianos.

Não é possível comparar, ainda, as livrarias de La Paz com as tradicionais lojas de alguns de seus países vizinhos, como a El Virrey, de Lima (Peru), ou a Prólogo (Chile), além das brasileiras e argentinas, mas espaços como a Yachaywasi e a Lectura (ambas no bairro de Zona Sur) apresentam uma boa seleção de autores locais e de história.

Além disso, em ambas é possível encontrar vários títulos bastante recentes do mercado editorial argentino, indo da ficção aos "instant books" tão popularizados no vizinho do sul. As lojas também oferecem vários títulos do subgênero "biografias de Evo Morales", com destaque para "El Jefazo", de Martín Sivak, e "Un Tal Evo", de Roberto Navia e Darwin Pinto.

LADEIRA DO CINEMA

Encravada numa das ladeiras que compõem o cenário de La Paz, está a Cinemateca Boliviana, criada em 1976 e reformada neste ano. Ali, além de encontrar cópias em DVD de filmes de Jorge Sanjinés, clássico local, fundador do grupo Ukamau e autor de documentários em aymara e quéchua, pode-se ver um pouco da nova produção.

Na semana passada, estavam em cartaz "Olvidados", filme boliviano com atores de vários países da região, sobre o Plano Condor, e "13 Días de Rebelión", da ativista feminista María Galindo. O prédio, que se abre para a montanha a partir de paredes de vidro, tem um agradável café e uma livraria.

MUCHO GUSTO

La Paz foi a cidade escolhida pelo empresário gastronômico Claus Meyer, um dos fundadores do estrelado restaurante dinamarquês Noma, para sediar sua experiência andina. Aberto em abril do ano passado, o Gustu atrai estrangeiros de passagem pela cidade. Tudo é preparado com ingredientes bolivianos e servido em cumbucas de cerâmica. Os carros-chefe são as carnes andinas (alpaca, lhama, cordeiro) e as trutas pescadas no lago Titicaca. É preciso reservar, pois o salão é pequeno.

SYLVIA COLOMBO, 42, é repórter especial da Folha e escreve o blog Latinidades no site do jornal.


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