Folha de S. Paulo


Monstros comuns e cotidianos no novo romance de Martin Amis

É difícil compreender por que as editoras que publicam os trabalhos de Martin Amis na Alemanha e França rejeitaram seu mais recente romance, "The Zone of Interest".

Uma sátira sombria que se passa principalmente em Kat Zet –o mesmo ramo fictício do complexo de Auschwitz que serve de cenário ao engenhoso romance "A Seta do Tempo" (1991)–, "The Zone of Interest" cria um senso gélido da banalidade do mal ao retratar os nazistas como pequenos burocratas em seus cubículos, papeando levianamente sobre suas vidas em tom parecido com o dos personagens da tira "Dilbert" ou da série "The Office".

Ainda que sua abordagem quanto ao tema possa parecer perturbadoramente irreverente, fica claro que Amis deseja usar essa estratégia narrativa como meio de chocar o leitor e lhe propiciar uma nova compreensão sobre a maneira pela qual aquilo que um dos personagens define como "exploração metódica, literal e pedante do bestial" pôde ganhar domínio sobre "um país sonolento de poetas e sonhadores". E embora o romance perca o ritmo na porção central, sua conclusão perturbadora demonstra com toda força o horror do Holocausto.

Andreu Dalmau-3.mar.2011/Efe
O escritor britânico Martin Amis em Barcelona em 2011
O escritor britânico Martin Amis em Barcelona em 2011

Desde que o filósofo Theodor Adorno alertou, pouco depois da guerra, sobre os perigos de tornar o Holocausto arte ("por meio dos princípios estéticos da estilização", ele argumentou, "o suplício inimaginável" seria "transfigurado, com a perda de parte de seu horror"), vasta gama de romances, filmes, peças e até graphic novels ("Maus", de Art Spiegelman) tomaram o assunto como tema. Aliás, "The Zone of Interest" nem é tão audacioso, nesse sentido.

Certamente não se trata da primeira obra de arte a usar a sátira ou a extrema estilização como forma de encarar a malevolência radical do nazismo: "Sete Belezas", filme de Lina Wertmüller, justapunha o monstruoso e o cômico para enervar o espectador, enquanto "Nosso Hitler", filme experimental com mais de sete horas de duração, dirigido por Hans-Jürgen Syberberg, empregava fantoches, números musicais e imagens surreais para tentar transmitir a sensação do poder do Fuhrer e do mundo de pesadelo da Alemanha nazista.

Que a renomada editora francesa Gallimard tenha se recusado a publicar "The Zone of Interest" –supostamente, nas palavras do editor que comanda a divisão norte-americana da empresa, porque o romance "não é muito convincente"– é ainda mais intrigante se o leitor recordar que, não muitos anos atrás, a França conferiu seu mais prestigioso prêmio literário, o Goncourt (bem como um prêmio da Académie Française) ao deliberadamente sensacionalista e repelente romance "As Benevolentes", de Jonathan Littell, narrado do ponto de vista de um nazista renitente e que, com perversidade e voyeurismo, se estende por mais de 900 páginas de cenas em que judeus são torturados, mutilados e executados, entrelaçadas às fantasias incestuosas e masoquistas do narrador.

Há muito de repulsivo em "The Zone of Interest", também. Amis usa sua já antiga fascinação com as funções corporais e o grotesco (que em seus romances iniciais era expressa por descrições de cenas de sexo e de repulsivos hábitos adolescentes) para oferecer ao leitor uma repelente conscientização sobre as abominações infligidas pelas nazistas às suas vítimas. O mais poderoso é sua insistência na fedentina que emanava do campo (tão forte que seria impossível para os moradores próximos ignorá-la, por mais determinados que estivessem em praticar a negação): a "putrefação escancarada da pira e do prado", "o odor de cartolina degrada pela umidade" que escapava das chaminés ("com um traço de truta", um lembrete "de que os seres humanos evoluíram dos peixes"), e o "fedor da fome –os ácidos e gases da digestão interrompida, com um tom subjacente de urina".

A maior parte da história é narrada do ponto de vista de três personagens centrais. Um deles é Paul Doll, o comandante do campo, que vive pressionado e imerso em autopiedade, se queixando sobre o cronograma absurdo de transporte de prisioneiros que seus superiores insistem em que ele aceite ("como se eu já não tivesse o suficiente para fazer"), e que devaneia, no teatro, sobre "quanto tempo será que demoraria, considerando a altura do teto e a umidade, para aniquilar toda a audiência com gás venenoso".

Há também Golo Thomsen, sobrinho de Martin Bormann (o secretário privado de Hitler) e veterano conquistador, que se apaixona por Hannah, a robusta mulher de Doll. E, por fim, Szmul, membro do Sonderkommando, "os homens mais tristes da história do mundo" –prisioneiros forçados a auxiliar na remoção dos corpos dos crematórios e câmaras de gás–, que observa que pesadelos "são incapazes de conceber algo nem de longe tão terrível quanto aquilo que eu faço todos os dias".

Szmul serve como consciência moral do livro, e as seções narradas por ele sublinham o horror do que está realmente acontecendo em Kat Zet, por sob a falação vazia dos outros personagens quanto a custo/benefício, atingir metas e descobrir a maneira "ergonomicamente correta" de realizar sua tarefa.

Ao longo de sua carreira, Amis sempre mostrou forte afinidade pela linguagem, e ao fazer com que os nazistas do romance conversem no tom coloquial da geração milênio norte-americana (com alguns toques de condescendência aristocrática britânica), ele nos torna agudamente conscientes da imensa banalidade do mal. O que retém a atenção de Thomsen no campo, ele escreve, "não são os homens de uniforme listrado, esperando em filas ou correndo ordeiramente", mas "as figuras em ternos de cidade, projetistas, engenheiros, administradores das fábricas da IG Farben em Frankfurt, Leverkusen, Ludwigshafen, com seus caderninhos de capa de couro e trenas amarelas, caminhando delicada e cuidadosamente entre os corpos dos feridos, dos inconscientes e dos mortos".

Amis já tratou das atrocidades do século 20 antes. (Escreveu sobre os campos de trabalho escravo de Stálin no infortunado "Koba, o Terrível" e no profundamente comovente "A Casa dos Encontros"). No livro mais recente, o leitor às vezes sente que Amis está demonstrando excessiva autoconsciência quanto ao que procura fazer. E ele enfatiza repetidamente o óbvio sobre a repulsiva despreocupação de seus burocratas nazistas quanto aos crimes contra a humanidade que estão ajudando a cometer –ou, no mínimo, permitindo que ocorram. Um diálogo entre Thomsen e seu amigo Boris transcorre assim: "Você concordaria em que não haveria como tratá-los ainda pior?" Resposta: "Ah, deixa disso. Nós não os comemos". Outro personagem diz que "tratar a força de trabalho como descartável, sr. Thomsen, é imensamente contraproducente. Meu Deus, esses Kapos! O que há de errado com eles?"

"The Zone of Interest", no entanto, ganha muita força no final, por efeito cumulativo. O fim do livro lembra estranhamente a conclusão de "O Terceiro Homem", o grande filme de Carol Reed. (Passado na Viena do pós-guerra, o herói do filme se apaixona por uma mulher chamada Anna Schmidt –nome decididamente semelhante ao da mulher de Doll, Hannah Schmidt– que viveu com um homem profundamente malévolo.) A essa altura do romance, Amis não só já extraiu emoção genuína do relacionamento entre Hannah e Thomsen como nos ofereceu uma visão perturbadora sobre a monstruosidade dos crimes nazistas.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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