Folha de S. Paulo


Combatemos o apartheid, agora a mudança climática é a inimiga global

Desmond Tutu argumenta que as táticas empregadas contra empresas que faziam negócios com a África do Sul precisam agora ser aplicadas aos combustíveis fósseis

Nunca antes na história os humanos precisaram agir coletivamente em defesa da Terra. Como espécie, suportamos guerras mundiais, epidemias, fome coletiva, escravidão, apartheid e muitas outras consequências hediondas de intolerâncias religiosas, de classe, raciais, de gênero e ideológicas. As pessoas são extraordinariamente resilientes. A Terra já mostrou ser bastante resiliente, também. Ela conseguiu suportar a maior parte do que lhe foi imposto desde a Revolução Industrial e a invenção do motor de combustão interna.

Até agora, isto é. Porque os dados científicos são inequívocos: a esponja que nos protege e sustenta, nosso meio ambiente, já está saturada de carbono. Se não limitarmos o aquecimento global a dois graus ou menos, estaremos fadados a um período de instabilidade sem precedentes, insegurança e perda de espécies. Os combustíveis fósseis alimentam os empreendimentos humanos desde que nossos ancestrais desenvolveram a habilidade de fazer e controlar o fogo. Carvão, gás e óleo aquecem nossas casas, movem nossas indústrias e possibilitam nossos deslocamentos. Nós nos deixamos ficar totalmente dependentes deles e ignoramos os sinais do desastre que se aproxima. É hora de agir.

Como cidadãos responsáveis do mundo -irmãos e irmãs em uma só família, a família humana, a família de Deus–, temos o dever de persuadir nossos líderes a nos conduzir numa direção nova; a nos ajudar a abrir mão de nossa dependência coletiva dos combustíveis fósseis, começando esta semana na Cúpula Climática das Nações Unidas. Reduzir nossa pegada de carbono não é apenas uma necessidade científica técnica, mas também se coloca como um dos desafios de direitos humanos de nosso tempo. Enquanto as emissões globais foram aumentando sem ser freadas, seus impactos tomaram conta do mundo real. Os efeitos mais devastadores das mudanças climáticas -tempestades letais, ondas de calor, secas, aumento dos preços dos alimentos e o surgimento de refugiados climáticos-estão atingindo os pobres do mundo. Aqueles que não contribuíram para criar o problema são os mais afetados, enquanto aqueles que têm a capacidade de conter a situação hesitam. Os africanos, que emitem muitíssimo menos carbono que as pessoas de qualquer outro continente, vão pagar o preço mais alto. É uma injustiça profunda.

As Nações Unidas merecem elogios por sua liderança em questões de direitos humanos. Com relação às mudanças climáticas, porém, a ONU enfrentou a resistência de governos e líderes industriais que até agora vinham priorizando metas econômicas e políticas de curto prazo, em detrimento de nossa sobrevivência coletiva de longo prazo. Não podemos mais tergiversar. Não podemos continuar a alimentar nossa dependência dos combustíveis fósseis, como se o futuro não existisse. Porque não haverá futuro. Precisamos urgentemente iniciar uma transição global a uma nova economia energética segura. Isso requer um repensar fundamental de nossos sistemas econômicos, para colocá-los em bases sustentáveis e mais equitativas.

Não deixo de ter alguma esperança. Quando nós, humanos, caminhamos de mãos dadas em defesa de uma causa justa, tornamo-nos uma força irresistível. Há muitas maneiras pelas quais todos nós podemos combater as mudanças climáticas: deixando de desperdiçar energia, por exemplo. Mas, nos dizem os cientistas, essas medidas individuais não farão uma diferença suficiente. E podem não ser apropriadas para os pobres do mundo.

Podemos boicotar eventos, times esportivos e programações de mídia patrocinados por empresas de combustíveis fósseis; podemos exigir que os anúncios dessas empresas tragam avisos de saúde; podemos organizar dias sem carro e outras plataformas para promover uma conscientização maior da sociedade, e podemos pedir a nossas comunidades religiosas que preguem sobre a questão a partir de seus púlpitos diversos. Podemos incentivar as empresas energéticas a gastar uma parte maior de seus recursos com o desenvolvimento de produtos de energia sustentável e podemos recompensar as empresas que comprovadamente o fazem, usando seus produtos e excluindo os de outras.

Assim como, na década de 1980, argumentamos que aqueles que faziam negócios com a África do Sul sob o regime do apartheid estavam ajudando e apoiando um sistema imoral, podemos dizer que ninguém deve lucrar com a elevação da temperatura, a elevação do nível do mar e o sofrimento humano causado pela queima de combustíveis fósseis.

Podemos incentivar mais de nossas universidades, municípios, fundações, corporações, indivíduos e instituições culturais a cortar seus laços com a indústria de combustíveis fósseis. Podemos incentivá-los a deixar de investir nos combustíveis fósseis e, no lugar deles, investir na energia renovável. Tirar seu dinheiro do problema e direcioná-lo para as soluções. Podemos pedir a nossos governos que invistam em práticas sustentáveis, deixem de subsidiar os combustíveis fósseis e congelem a exploração adicional de novas fontes energéticas fósseis. As reservas fósseis que já foram descobertas excedem os volumes que poderão algum dia ser usados em segurança. No entanto, empresas gastam meio trilhão de dólares por ano na procura de mais combustíveis. Elas deveriam redirecionar esse dinheiro ao desenvolvimento de soluções energéticas limpas. Podemos apoiar nossos líderes para que façam as opções morais corretas e evitem a influência industrial indevida que obstrui a vontade política de combater as mudanças climáticas. Através do poder de nossa ação coletiva, podemos exigir que aqueles que auferem lucros limpem a sujeira que provocam. A boa notícia é que não precisamos começar do nada. Jovens em todo o mundo já identificaram as mudanças climáticas como o maior desafio de nossos tempos e já começaram a fazer alguma coisa.

Nos últimos três ou quatro anos assistimos à ascensão de um novo movimento de desinvestimento da sociedade civil que se posiciona ao lado de cientistas, ambientalistas e ativistas sociais que contestam a posição moral da indústria de combustíveis fósseis.

Novamente, é um movimento global liderado por estudantes e grupos religiosos, ao lado de hospitais, cidades, fundações, corporações e indivíduos. É um movimento moral para persuadir as empresas de combustíveis fósseis a se afastarem de um modelo econômico que coloca em risco nossa própria sobrevivência. Rezo para que em Nova York, esta semana, a humanidade dê seus primeiros passos concretos para transcender a era dos combustíveis fósseis.

Há uma palavra que usamos na África do Sul para descrever os relacionamentos humanos: "ubuntu". Ela significa: "eu sou porque você é". Minhas vitórias e minhas derrotas estão vinculadas às suas. Somos feitos uns para os outros, para a interdependência. Juntos, podemos mudar o mundo para melhor.

Quem pode bloquear as mudanças climáticas? Nós podemos. Você, você, você e eu. E não se trata apenas de que podemos barrá-las -temos a responsabilidade de fazê-lo, uma responsabilidade que começou na gênese da humanidade, quando Deus ordenou aos primeiros habitantes humanos do Jardim do Éden que "o cultivassem e o guardassem". O "guardassem" -não que fizessem mau uso dele, não que tentassem arrancar o máximo possível de dinheiro dele, nem que o destruíssem.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: