Folha de S. Paulo


Êxodo urbano na atual escrita brasileira

RESUMO O antigo mote da fuga da cidade se atualiza como tema na produção literária recente no país. Desde "Barba Ensopada de Sangue" (2012), a busca por um espaço de evasão reaparece nos romances, apenas para se mostrar ela também uma possibilidade fugidia, diante da urbanização do campo e da onipresente tecnologia.

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Há alguns anos, dividindo uma mesa com Daniel Galera na Feira do Livro de Ribeirão Preto, ele me contava dos planos de por uns meses se mudar para o litoral de Santa Catarina, para escrever, espairecer, viver.

"Fazia parte de uma fantasia antiga de morar um tempo na praia, desenvolver meu gosto pela natação ao ar livre, ficar um tempo isolado de todo mundo que eu conhecia. Houve uma configuração especial de situações financeiras, profissionais e pessoais que me fez decidir que o momento era aquele, início de 2008", diz ele hoje. "Na época eu não tinha nenhuma justificativa intelectual para esse impulso e muito menos um argumento literário predefinido a explorar, mas eu sabia que a experiência seria valiosa para a escrita."

Morar na praia, um desejo meio adolescente ou quase arquetípico que senhores escritores libertos da rotina de uma firma enfim podem satisfazer. Na época eu o invejei, mas não me considerava capaz ainda de abandonar a hiperurbanidade de São Paulo (faria isso dois anos depois, me mudando para Florianópolis). Da experiência concreta de Galera em Garopaba nasceu o excelente "Barba Ensopada de Sangue" [Companhia das Letras, 424 págs., R$ 42], que arrebatou o Prêmio São Paulo de Literatura no ano passado, talvez o primeiro grande livro a marcar uma nova tendência contemporânea de fuga da cidade.

Há muito que o termo "literatura urbana" deixou de fazer sentido, com basicamente toda a cultura sendo produzida em ambientes urbanos -sejam eles metrópoles ou cidades do interior. As cidadezinhas hoje estão integradas pela televisão, pela internet, pela própria modernização do país. Até mesmo a música caipira se transformou no sertanejo universitário; no campo em si, aparentemente, só vivem os bois.

Nesse contexto, o autor contemporâneo, sempre um "outsider", parece estar cansado dos cenários asfaltados e vem procurando uma reidentificação com o campo, com a praia. Longe de uma visão bucólica, como a do romantismo, o realismo bizarro contemporâneo se depara com uma natureza hostil e misteriosa, na qual o indivíduo não encontra seu papel.

Isso está presente no romance de Galera e pode ser identificado em grande parte da produção literária atual.

No premiado "Os Malaquias" [Língua Geral, 276 págs., R$ 39], Andrea del Fuego já antecipava essa tendência, revisitando as raízes rurais de sua família na região de Furnas, sul de Minas. Ana Paula Maia, cujo trabalho se situa à margem das cidades, com personagens suburbanos, migrou de vez para o campo com seu ótimo "De Gados e Homens" [Record, 128 págs., R$ 30]. O catarinense Guille Thomazi, inspirado pelos negócios de sua família, também ambientou sua linda novela de estreia, "Gado Novo" [7Letras, 66 págs., R$ 26], no campo pecuário. Marcelino Freire, contista experiente que sempre retratou a vida dos marginalizados nas grandes cidades, estreou no romance com "Nossos Ossos" [Record, 128 págs., R$ 28], um "road book" de volta ao sertão, que também remete às suas origens.

Dessa forma, esse reencontro com a natureza é feito através de um êxodo espontâneo ou revendo as relações familiares, as raízes que remetem ao Brasil rural.

SÁTIRA

O novíssimo Raphael Montes, revelação da literatura policial, também leva seu protagonista a explorar a região serrana e litorânea do Rio de Janeiro em "Dias Perfeitos" [Companhia das Letras, 278 págs., R$ 35]. Nele, a escolha do cenário vem como uma sátira assumida ao campo bucólico de outrora.

"O título e a própria narrativa ironizam ao usar traços das clássicas histórias de amor. Nessa medida, a busca do interior contribui para o bucolismo do casal vivendo um amor intenso: a praia deserta, o chalé cercado de natureza... É algo como: na cidade grande não se pode viver o amor puro e pleno", coloca Montes.

Simone Campos, escritora carioca (ainda) jovem, que publicou seu primeiro livro aos 17 anos e sempre teve uma literatura muito pop e calcada nos ambientes urbanos (vide sua estreia com "No Shopping", 7Letras, 2000), lança agora "A Vez de Morrer" [Companhia das Letras, 256 págs., R$ 38], em que parece já dar um passo além nessa visita ao mato.

A bolha imobiliária carioca é colocada no romance como uma razão concreta para essa migração: "Quando falava em Maremoto ele se referia à escalada dos preços dos imóveis no Rio. [...] Os cariocas foram expulsos em direção ao interior, dois bairros a menos na escala de preferência. Os filhos da classe média começaram a adquirir imóveis em antigos destinos de fim de semana, como Petrópolis e Itaipava", escreve, na página 190.

Mas a conclusão dessa migração é frustrante e insatisfatória. Aqui, parece haver a constatação de que o campo como coisa externa já não existe mais. A fuga da cidade já não é mais possível, porque o urbano está em todo lugar e só é possível migrar para seus derivados: suburbano, pós-urbano.

E talvez essa seja a resposta. A literatura brasileira busca novos horizontes, mas já vela um paraíso perdido. Um cenário que não mais existe. Uma natureza-morta à qual ela não pertence. O campo já tem pedágio e loja de conveniência.

"A vida longe dos centros urbanos é cada vez mais urbana. O isolamento e afastamento que fariam mais sentido, em termos de ruptura existencial, são de outra ordem: manter-se longe da internet, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo, por exemplo. Mesmo para quem se enfia no mato, isso é cada vez mais difícil", completa Galera.

Se eu fosse prever qual seria a busca literária para anos futuros, diria que são os romances de viagens internacionais, até porque, nos últimos anos, com a bolsas de tradução da Fundação Biblioteca Nacional e o foco que o Brasil ganhou como sede da Copa e país homenageado da Feira de Frankfurt (em 2013), os autores brasileiros foram publicados no exterior e viajaram como nunca.

Em seguida, fazendo um exercício de futurologia, é claro, viriam as viagens interplanetárias, talvez os universos paralelos. Daí talvez a ficção brasileira descubra de fato o fantástico. Afinal, nossos campos já não dão frutos. Nossas cidades estão congestionadas. O escritor brasileiro está revirando e redescobrindo o país para constatar que o concreto do Brasil concreto não mais lhe basta.

SANTIAGO NAZARIAN, 37, é tradutor e autor, entre outros, do romance "Biofobia" (Record), que se passa numa casa de campo.


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