Folha de S. Paulo


Os sinais no cinema de Eugène Green

O espectador desavisado que comparecer ao Indie Festival deste ano (que chegou ao fim em Belo Horizonte semana passada e que acontece em São Paulo, no Cinesesc, entre os dias 17/9 e 1º/10), e que porventura entrar em uma sessão qualquer da retrospectiva completa do Eugène Green, terá pela frente um choque de expectativas.

Se simplesmente quiser ver uma amostragem de filmes sintonizados com o cinema independente contemporâneo, a surpresa poderá ser desagradável: a interpretação antinaturalista e a abundância de discussões teóricas podem levar esse espectador à monotonia. Mas se ele se permitir ser conduzido por esse autor tão generoso quanto original, a recompensa poderá ser alta.

Navegando na contramão do empirismo reinante, Green oferece uma obra marcada pela concisão, pelo bom humor e pela força da palavra. Para apreciá-la, não é preciso erudição ou atenção às sutilezas. Convém apenas investir sua atenção ao presente do que é dado a ver (sempre frontalmente). A recompensa, dizíamos, é alta: a clarividência.

Em "As Palavras e as Coisas", Michel Foucault descreve, com o seu habitual tom arqueológico, a episteme do homem renascentista. Segundo nos conta, considerava-se na época que algumas "marcas" haviam sido depositadas na natureza para que os homens pudessem decifrá-las, e assim desvendar os seus segredos. Foucault chama essa classe de signos pelo nome de "assinalação", ou ainda "sinal". O seu papel era "sinalizar" uma relação externa entre dois outros elementos. Diferente da disposição binária dos signos, tal como foi difundida no século 17, definida em Port-Royal pela ligação do significante ao significado, as "assinalações" no século 16 correspondiam ao terceiro vértice de uma relação epistemológica ternária.

Urs Flueeler - 8.ago.2014/Efe
O cineasta francês nascido nos EUA Eugène Green no festival de Locarno deste ano
O cineasta francês nascido nos EUA Eugène Green no festival de Locarno deste ano

Mas por que essa mediação se o mundo visível já se apresentava por inteiro ao nosso conhecimento? A importância desse terceiro elemento, que existia desde o estoicismo sob a denominação de "conjuntura", se deve à distância entre as duas outras partes. Foucault: "Para saber que o acônito cura nossas doenças de olhos ou que a noz esmagada com álcool sana as dores de cabeça, é preciso uma marca que no-la advirta: sem o que este segredo permaneceria indefinidamente adormecido". A busca do conhecimento estaria, assim, intimamente ligada à decifração de sinais. É por isso que Foucault define a epistemologia renascentista como uma justaposição da semiologia com a hermenêutica. Essa é a origem da frutífera comparação entre a linguagem textual e a "linguagem da natureza". O papel que a palavra exercia nas escrituras sagradas equivaleria ao papel que o sinal exercia no grande tecido da vida. Eram eles que permitiam ao homem ascender ao conhecimento divino (divinatio); correspondiam ao ponto de contato entre o homem e Deus.

Um pouco à maneira do que se dava na epistemologia renascentista, e muito na contramão do cinema autoral contemporâneo, Eugène Green faz hoje filmes que solicitam de seu espectador um investimento intelectual na decifração de semelhante categoria de signos. Em seu primeiro filme, "Todas as Noites" (2001), por exemplo, Green recoloca o seu espectador diante de uma rede de sinais luminosos cuja leitura fará com que compreenda o sentido do filme.

E sempre haverá um sentido, não devemos perder isso de vista: como na epistemologia renascentista, a interpretação corresponde a uma etapa fundamental da busca pelo conhecimento. A realidade ficcional torna-se para o espectador de cinema mais ou menos o que o mundo sensitivo é para o homem místico: campo de ação para a busca de um sentido. Nada acontece por acaso, a vida não é um "acidente da matéria". Tudo tem um propósito, embora nem sempre se ofereça a nós passivamente.

Esses sinais, de fato, nunca se dão por inteiro. Eugène Green deixa algumas brechas pelo caminho, algumas pistas inacabadas. Cabe ao espectador se empenhar ativamente para completar o que não lhe é inteiramente dado. Assim, não lhe restará outra forma de se relacionar com o filme senão pela fé. O espectador deve ser capaz de decifrar esses signos especiais à maneira de um vidente que busca nas sementes das plantas, ou ainda nas constelações do firmamento, reflexos visíveis de um mundo espiritual invisível. É o cinema da clarividência.

O gosto de Green pela metafísica neoplatônica parece encontrar aqui um amparo estético. A busca pelo conhecimento deve ser travada pelo homem, não no interior de seu inconsciente (o que explica seu desprezo pela psicanálise), mas na objetividade contingente da natureza. Afinal, os sinais espalhados por Eugène Green em seus filmes são como espelhos do inteligível, cujos reflexos (perfeitamente legíveis) se apresentam ao homem como pura exterioridade.

Esses sinais, tão recorrentes na obra de Green, jamais poderiam pertencer ao mundo mental de algum personagem. É importante enfatizarmos isso, pois essa postura, por assim dizer, "para fora", diz muito sobre a totalidade de seu cinema. Nunca se verá em seus filmes a manifestação do mundo imaginativo (sonhos, delírios, pressentimentos) ganhando uma forma própria. Isso se nota na total ausência de "travellings" psicológicos, efeitos visuais ou sonoros, câmera na mão ou "plano ponto de vista" que denotem o mundo subjetivo de algum personagem. Aqui reside um ponto crucial do cinema de Eugène Green: o que se vê em seus filmes é antes uma linguagem simples e decantada, livre de excessos e verborragias, desprovida de jogos metalinguísticos ou arabescos mentais, enfim, o exato oposto do que parece estar muito em voga no cinema autoral contemporâneo. A conferir em tela grande na programação do Indie Festival.

PEDRO FAISSOL, 32, é pesquisador e mestre em audiovisual pela USP com a dissertação "A Natureza Eloquente - Um Estudo sobre o Cinema de Eugène Green".


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