Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Dona Meire chamou o síndico

São Paulo, 1996

Numa das manhãs em que passeava de bicicleta em companhia de meu pai, no bairro da Água Branca, vindo da Lapa, bairro onde me criei, paramos pra observar a movimentação naquela obra de grandes proporções que surgia. Perguntei ao pai o que seria, e ele achava se tratar de mais uma fábrica que ali se instalaria. Estávamos em meados dos anos 1960.

Anos depois, soubemos que era o início das obras da futura Fundação Padre Anchieta. Jamais poderia imaginar que passaria mais de 20 anos de minha vida adulta colaborando com a TV Cultura, que ali se instalaria em junho de 1969.

Tive o prazer de participar como ator na série infantil "Rá-Tim-Bum", na qual interpretava o personagem Zé da Câmera, juntamente com a dona Darlene. Já no "Castelo Rá-Tim-Bum", criei as músicas do "Como se Faz" ("eu vou mostrar para a moçada como fazer...").

Por fim, em 1991, iniciamos o programa musical "Bem Brasil", que permaneceu no ar até 2008, levando 775 shows ao vivo para todo o Brasil. Por lá passaram artistas como Paulinho da Viola, Dominguinhos, Pitty, Daniela Mercury (se lançando em Sampa, em 1992), Gal Costa, Rappa, Chico Science, Hermeto Pascoal, Lulu Santos, Altamiro Carrilho, Sivuca, Cássia Eller e tantos mais.

Quando Elza Soares fez o programa, numa manhã fria e chuvosa de inverno, o público não compareceu. Fiquei constrangido de saber que estava diante de uma das maiores artistas do mundo e não teria o calor da plateia habitual. Resolvemos falar com Elza para que ela decidisse se faria ou não o show, uma vez que podíamos colocar uma reprise, e ela voltaria outro dia. Aí é que sua grandeza se consolidou. Nem cogitou a possibilidade de não fazer, em respeito aos telespectadores de todo o Brasil. Daquele dia em diante, nunca mais me preocupei com a quantidade de pessoas na plateia.

Em 16 de junho de 1996, estava a caminho do Sesc Interlagos, onde gravávamos o "Bem Brasil" de então (o início foi no Anfiteatro Romano da USP), um pouco preocupado com a sessão ao vivo daquela manhã de domingo. O motivo: o convidado seria o síndico, o grande Tim Maia.

Todos sabem que o senso de compromisso com horário do Tim era inversamente proporcional ao seu talento. Chego ao local onde rolava o programa, um palco montado sobre o lago daquela unidade do Sesc, por sua vez coberto por um toldo que lembrava vagamente uma asa delta.

Dez horas da manhã de domingo -o programa ia ao ar das 11h às 12h30-, vou descendo a rampa que me levaria ao camarim, ouço o Tim Maia passando o som. Já era um susto e uma satisfação; chegou antes de mim e, ao me ver, pergunta: "Wandi, e o Premê?".

Susto maior, pois conhecia o grupo em que eu tocava (que não era famoso e integrava a chamada Vanguarda Paulista). Ele me leva para o camarim dele, liga para o Almir Chediak e sugere que faça o songbook do Premeditando o Breque, além de me presentear com seu CD autografado.

Acervo Pessoal
O CD de Tim Maia autografado pelo cantor para Wandi, em 1996
O CD de Tim Maia autografado pelo cantor para Wandi, em 1996

Dali pra frente, só alegria. O show começa; a Vitória Régia ataca, um tempinho depois o homem entra, e a maravilha se instaura.

Olho pra plateia, imensa, e vejo a dona Meire, uma antiga seguidora do programa, na primeira fila. Ela amava o Tim Maia e vivia me perguntando quando ele iria ao "Bem Brasil", porque nunca tinha visto seu show ao vivo, em função do alto preço dos ingressos. Nossos olhares se cruzam, ela tira um lencinho da bolsa, enxuga os olhos e começa a dançar com a massa. Enquanto o síndico canta, escrevo uns versos na ficha de apresentação:

"Ouvidos atentos!
Escutar Tim Maia
É despertar
Nossos melhores
Sentimentos".

WANDI DORATIOTTO, 61, é músico, ator e apresentador. Seu grupo, o Premeditando o Breque, se apresenta nos dias 13 e 14/9, no Sesc Belenzinho.


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