Folha de S. Paulo


A cripta cinematográfica no topo da escada

Na DuArt, milhares de filmes sem dono

O edifício que abriga a DuArt, a mais conhecida incubadora do cinema independente dos Estados Unidos há 70 anos, fica no centro de Manhattan e tem 12 andares de altura. O elevador só vai até o 11º andar. Para chegar às salas mais deslumbrantes da DuArt, é preciso usar a escada.

No piso mais alto, em uma longa sucessão de salas mofadas, de paredes verdes, centenas de latas de filmes estão empilhadas, do chão ao teto, cada lata portando o nome de uma produtora desaparecida, o de um diretor obscuro ou o de um filme que bem poderia se chamar "Beco Sem Saída". Esse repositório de sonhos destroçados também é um orfanato, para filmes à espera de adoção. Quem fez todos esses filmes? A DuArt também gostaria de saber.

Nicole Bengiveno - 10.jul.2014/The New York Times
Steve Blakely, Richard Peña e Israel Ehrisman da IndieCollect
Steve Blakely, Richard Peña e Israel Ehrisman da IndieCollect

Com a ascensão do cinema digital e a subsequente morte do celuloide, a DuArt em 2010 fechou sua divisão fotoquímica, que revelava negativos e produzia cópias. Àquela altura, ela tinha cerca de 60 mil latas de filme em seu labirinto de estantes.

"Tenho problemas em jogar filmes fora", diz Irwin Young, o chairman da companhia, fundada pelo pai dele em 1922. "Nunca jogamos coisas fora. Somos gente de cinema."

Filmes de Woody Allen, James Ivory, Ang Lee, Gordon Parks, Tom DiCillo, Spike Lee, Susan Seidelman e outros foram identificados e retirados, mas outros continuam à espera e, no caso de muitos deles, não há indicações claras de propriedade, diz Steve Blakely, antigo vice-presidente da DuArt que continua a tentar localizar realizadores desde 2010.

Não é mistério algum o fato de que a DuArt tenha em mãos todos esses filmes. "Os laboratórios gostavam de preservar esses materiais porque podiam significar mais trabalho para eles", disse Blakely, mencionando o cheirinho de emulsão que ainda pende sobre o antigo laboratório de revelação de filmes de 35 mm em branco e preto da empresa. "Na cabeça do laboratório, se o material está lá, ele pode terminar sendo pago por produzir novas cópias."

A maioria dos cineastas, ele diz, conclui um filme e imediatamente passa a se concentrar em seu próximo trabalho. "Ou simplesmente o perdem de vista", acrescentou. "Ou presumem que um produtor tomará conta do assunto. Muitos dos cineastas que contatei dizem que não fazem ideia de que há material deles conosco, ou perguntam se os seus produtores não retiraram o material. Mas o motivo principal é que eles simplesmente passam ao próximo projeto."

O dilema da DuArt –onde os filmes que aguardam adoção incluem "Mermaids and Pickles" (sereias e picles), "Hoedown in China" (dança de rodeio na China) e "Secret People: The Naked Face of Leprosy in America" (pessoas secretas: a face nua da lepra na América)– é um lembrete sobre a natureza transitória do cinema independente, e os perigos da independência. Hollywood perdeu boa parte de seu legado inicial por conta do raciocínio de que filmes eram descartáveis, e apenas mais tarde aprendeu a tomar conta de sua herança. Os filmes independentes, por sua natureza, não contavam com um sistema de preservação. Pessoas morrem. Empresas fecham. Não existe um banco de dados.

Nem mesmo os títulos ajudam, Blakely apontou. "Alguém vasculha os arquivos aqui e diz: 'olha lá, Avatar!', e nós respondemos que não é aquele, basta olhar o ano na caixa."

Para ocupar esse vazio surgiu a IndieCollect, criada por Sandra Schulberg, produtora de cinema que se tornou conservacionista. Ela criou uma espécie de agência de adoção para filmes órfãos, com Blakely no papel de arquivista. Há planos para um índice online, uma enciclopédia sob a supervisão de Richard Peña, ex-diretor de programação na Film Society do Lincoln Center, e de encontrar um lar em um arquivo para qualquer filme que precise de abrigo.

No ano passado, Schulberg reuniu outros arquivistas de grandes instituições que agora abrigam filmes da DuArt, entre as quais o Museu de Arte Moderna de Nova York, George Eastman House, Anthology Film Archives, a Biblioteca do Congresso norte-americano e a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

"A academia sempre preservou filmes independentes", diz Ed Carter, o curador de documentos da instituição. Uma das descobertas mais interessantes que ele fez na DuArt, conta Carter, foi "Cane River" (1982), de Horace Jenkins.

"Foi seu primeiro filme, produzido em Nova Orleans, e estava indo muito bem", conta Carter. "O filme tinha lançamento marcado em Nova York, mas três meses antes Jenkins morreu de um ataque cardíaco, aos 42 anos. Ele era a força motora do projeto, e não havia quem o substituísse, e por isso o filme nunca foi lançado."

"Cane River" apresenta o mesmo problema de boa parte do material deteriorado disponível no DuArt: só existe como negativo, e não se pode exibir um negativo. Por isso, não há nem como saber do que trata o filme, muito menos determinar se é bom ou ruim.

"Pode ser horrível, pode ser uma obra-prima, não temos como saber", disse Carter, acrescentando que o filme é supostamente um romance entre pessoas de raças diferentes que tem por pano de fundo a cultura creole. O que ele sabe é que Richard Pryor assistiu a uma exibição de "Cane River" (o que significa que existe uma cópia em positivo), e que se ofereceu para organizar distribuição para o filme via Warner Bros., estúdio com o qual ele tinha um contrato para a distribuição de produções de cineastas negros.

"Os produtores disseram não a Pryor e à Warner", conta Carter. "Aparentemente isso teve alguma influência sobre o ataque cardíaco do cineasta, que adoeceu e morreu no dia seguinte."

Outros achados incluem o negativo de "Solomon Northup's Odyssey", filme de Gordon Parks sobre o mesmo homem que serve de tema ao recente "12 Anos de Escravidão", e "Venice: Themes and Variations", que James Ivory dirigiu quando estudante e, em 1957, entrou em uma lista de filmes não comerciais notáveis publicada pelo "New York Times". Ivory acreditava que o filme estivesse perdido.

"Infelizmente não se trata do negativo original, mas de uma transferência, mas ainda assim é bom tê-lo", disse Ivory, por telefone, do interior do Estado de Nova York. "Nós enviamos filmes a tantos laboratórios diferentes, a tantos lugares diferentes. Movimentávamos negativos de país a país".

"Nós trabalhamos juntos por muito tempo", ele diz em referência ao sócio Ismail Merchant, morto em 2005, "e perdemos o controle sobre onde todas as coisas estavam."

No 12º andar da DuArt, uma pilha de caixas aguarda embarque para a Biblioteca do Congresso; o conteúdo de cada caixa está anotado nas tampas com letras coloridas: "Honeymoon Killers" (matadores de lua de mel); "Simbiopschotaxiplasm"; "Marvin's Room" (quarto de Marvin); "City of God" (cidade de Deus) ("o diretor me disse em fevereiro que logo entraria em contato comigo", conta Blakely); "Ride With the Devil" (passeio com o demônio); "Closely Watched Trains" (trens observados de perto); "The Believer" (o crente); "Convicts" (condenados).

Em outros lugares, há filmes que continuam perdidos, não só para o público mas para as pessoas que os fizeram.

Schulberg, cuja organização acaba de receber uma dotação de US$ 200 mil da Ford Foundation, riu ao contar ter pedido a ajuda de Leslie Harris, diretora de "Just Another Girl on the I.R.T." ("Ganhando Espaço", no Brasil), sucesso no festival Sundance de 1993, para ajudar a descobrir se a DuArt abrigava outras cópias perdidas de trabalhos de diretores negros.

"E quando ela estava vasculhando as salas, se deteve e disse: 'Meu Deus, tem um filme meu aqui do qual esqueci completamente'."

O título: "Never Forget" [nunca esqueça].

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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