Folha de S. Paulo


Um amante da ópera testa serviços de música em formato stream

Meu primeiro verão como crítico de música clássica estava se provando um colossal fracasso.

Consegui convencer meus chefes a me enviarem ao Festival de Aix-en-Provence, onde poderia ter me embriagado de Bach, Schubert e doses copiosas de vinho rosé? Não. E tampouco consegui ser apontado para cobrir o Festival de Salzburgo, onde eu poderia ter seguido as pegadas de Mozart, Strauss e da família Von Trapp, me fortificando com elegantes cafés e doces no Café Tomaselli. E meu sonho de assinar um artigo com a localização "em Lews, Inglaterra" –acompanhado por uma cesta de piquenique carregada de champanhe e de uma boa dose de óperas no festival de Glyndebourne– deu em nada.

Por isso, senti que o momento era bom para deixar de lado meus preconceitos ludditas e experimentar, tardiamente, alguns dos serviços de música em formato stream que tornaram possível desfrutar de todos esses, e outros, prazeres musicais do conforto de seu lar. (Nota aos chefes: eu não estava enrolando na redação o dia inteiro com aqueles fones de ouvido na cabeça. Era parte da minha pesquisa.)

A boa notícia, depois de um verão viajando na poltrona pelo mundo da música clássica é que, sem ter de tirar os sapatos em qualquer posto de segurança de aeroporto, consegui assistir a "Trauernacht", a sombria montagem moderna de Katie Mitchell para as cantatas de Bach, em Aix; conferir Anna Netrebko e Plácido Domingo cantando como barítono na nova produção de "Il Trovatore", de Verdi, em Salzburgo; e ouvir Michael Fabiano, um jovem tenor em ascensão, como Alfredo em "La Traviata", de Verdi, direto de Glyndebourne.

Boris Horvat - 9.jul.2014/AFP
A soprano Aoife Miskelly (esq.), a mezzo-soprano Eve-Maud Hubeaux (2ª da esq.), o barítono Andri Bjorn Robertsson (2º dir.) e o tenor Rupert Charlesworth (dir.) executam as cantatas
A soprano Aoife Miskelly (esq.), a mezzo-soprano Eve-Maud Hubeaux (2ª da esq.), o barítono Andri Bjorn Robertsson (2º dir.) e o tenor Rupert Charlesworth (dir.) executam as cantatas "Trauernacht", de Bach, no festival de Aix-en-Provence

A má notícia? Embora tenha se tornado notavelmente fácil, até mesmo para um amante da música desajeitado com a tecnologia, como eu, assistir a essas apresentações no computador, as coisas podem se complicar se você prefere assistir suas óperas e sinfonias na escala maior –para não mencionar os sofás e poltronas mais confortáveis– que a proximidade com um televisor oferece.

A ideia do "vamos permitir que um milhão de flores brotem", adotada pelas casas de ópera, orquestras e serviços online para suas experiências com a transmissão de música em formato stream, às vezes parece requerer um milhão de aparelhos diferentes para que se possa extrair o melhor de cada espetáculo. Três dos principais serviços de streaming por assinatura ligados a grandes instituições da música clássica, todos os quais pagos, servem como exemplo. O Digital Concert Hall da Filarmônica de Berlim foi muito fácil de assistir no meu televisor Sony, que é quase um smart TV, mas o app da Opera Estatal de Viena só existe para televisores Samsung, enquanto o serviço da Metropolitan Opera de Nova York funciona com o aparelho Apple TV. Embora sempre existam maneiras de contornar as restrições, isso complica desnecessariamente as coisas.

Isso faz com o usuário sonhe com um gigante do tipo Netflix –Netclassix?– que transmitiria facilmente peças em formato stream para todos os televisores, tablets, smartphones e computadores.

Mas, desconsiderados esses pequenos problemas, há certamente muita música de ótima qualidade disponível, já que diversas organizações estão recorrendo aos serviços de stream mais como instrumentos de marketing do que como potenciais fontes de receita.

A Ópera Estatal da Baviera transmite diversas óperas gratuitamente em formato stream a cada temporada, e esta semana eu assisti –em meu computador no "trabalho"– ao barítono Christian Gerhaher cantando o papel-título de "L'Orfeo", de Monteverdi, no Festival de Ópera de Munique. A produção de David Bösch atualiza a ópera de 1607, e seu cenário mítico, para 1974, e inclui uma Kombi na cena do casamento. A interpretação foi muitíssimo aplaudida pelos espectadores presentes ao Prinzregententheater.

A coisa mais próxima a um Netflix dos clássicos pode ser o Medici.tv, um site que me serviu de ingresso aos festivais de Verbier, na Suíça, Aix e Salzburgo, neste verão. O site oferece transmissões online de cerca de 100 espetáculos ao vivo por ano; assisti-los ao vivo não custa nada, e eles também ficam disponíveis gratuitamente no site por mais 90 dias. Depois disso, estão disponíveis para assinantes que pagam de US$ 100 a US$ 150 por ano por acesso on demand a seu acervo de 1,4 mil espetáculos musicais. O sistema funciona em computadores, tem um app para TVs Samsung e consegui usar seu app para o iPhone e assistir a uma apresentação na TV de minha casa usando o Google Chromecast.

Foi o Medici.tv que me permitiu assistir ao novo "Trovatore" em Salzburgo ao vivo, este mês, em meu computador. Normalmente não gosto de assistir a óperas no computador. Eles sempre pareceram mais instrumentos de trabalho que de diversão, para mim, e estão repletos de fontes de distração, como o e-mail e o Twitter. Mas no caso as distrações foram mais vantagem que incômodo. A montagem incomum, que atualiza a trama e a encena em um museu, ia se desenrolando e eu podia acompanhar as críticas em tempo real dos amantes da ópera, elogiando loucamente a Leonora de Netrebko e debatendo a transição de Domingo de tenor a barítono, no Twitter, Facebook e blogs. Era mais ou menos o equivalente operático de trocar bilhetes com os colegas de classe na sala de aula.

Barbara Gindl - 5.ago.2014/Efe
A soprano Anna Netrebko, o tenor Plácido Domingo (esq.), e o tenor Francesco Meli (dir.), em ensaio de
A soprano Anna Netrebko, o tenor Plácido Domingo (esq.), e o tenor Francesco Meli (dir.), em ensaio de "Il Trovatore", em Salzburgo

A explosão do streaming vem em um momento de indefinição, que força os fãs de música a fazer toda sorte de escolhas. Guardar aquelas centenas de CDs ou importá-los para a iTunes e jogar fora os discos? Substituir os aparelhos de som da época da primeira Guerra do Golfo, sucumbir ao movimento do home theater –que parece valorizar mais o vídeo que o áudio–, ou comprar fones de ouvido sem fio para conectar ao smartphone? O que virá a dominar o mercado, agora, como fez o VHS no passado, e o que desaparecerá sem deixar traços, como o Betamax?

Por décadas, a música clássica esteve na vanguarda da inovação tecnológica. A popularidade das primeiras gravações de Enrico Caruso ajudou a estimular a nascente indústria fonográfica. Estações de rádio começaram a transmitir concertos sinfônicos a partir do começo dos anos 20. Os LPs foram vistos desde o começo como bem apropriados a obras clássicas mais longas. E quer fosse de fato verdade ou quer apenas uma manobra astuta de relações públicas, um dos motivos para dar aos CDs a capacidade para armazenar 74 minutos de música era que essa era a duração da Nona Sinfonia de Beethoven.

Mas alguma coisa parece ter começado a ratear, nos últimos anos. Talvez seja só eu, ou meu equipamento não exatamente de última geração, mas as versões iniciais da iTunes –embora excelentes para armazenar e rotular singles– me faziam querer arrancar os cabelos quando o caso era a música clássica. Os libretos e as notas de contracapa que existiam no passado foram completamente abandonados, mas isso não era o pior: o iTunes ocasionalmente tinha dificuldade para entender que o segundo ato de uma ópera deveria se seguir ao primeiro ato. Tentar ensiná-lo a categorizar música por, digamos, compositor podia se tornar uma tarefa complicadíssima, requerendo capacidade de codificação digna da Agência Nacional de Segurança (NSA).

A era do streaming já está parecendo mais promissora. Serviços como o Spotify oferecem espantoso número de gravações. Ainda que realizar buscas nele não seja sempre fácil, em sua melhor forma o sistema é como ter uma discoteca pessoal. Chegando em casa certa noite no segundo trimestre, depois de ouvir Kristine Opolais cantando "Madame Butterfly" no Met, abri o app do Spotify em meu smartphone e ouvi gravações do papel por Maria Callas, Renata Tebaldi, Mirella Freni e Renata Scotto.

Agora, as principais casas de ópera e orquestras estão entrando no negócio do streaming por conta própria.

O Digital Concert Hall da Filarmônica de Berlim foi o mais fácil de usar, para mim. Meu televisor Sony já trazia o app pré-instalado, e com uma assinatura teste de uma semana, que ativei me conectando ao site. Depois bastava usar o controle remoto do televisor, como faço para assistir séries de mistério britânicas ruins na Netflix.

Ainda que eu não tenha assistido a qualquer concerto ao vivo no meu verão, passei pelo arquivo da Filarmônica, que tem mais de 250 concertos, incluindo não só as recentes temporadas sob a regência de Simon Rattle mas apresentações mais antigas conduzidas por Claudio Abbado e Herbert von Karajan. O processo de busca é fácil: por temporada, regente, compositor. Depois de assistir um concerto de 2013 com o hilariante "Abertura do Holandês Voador Tocada sem Partitura por uma Má Orquestra de Hotel às Sete da Manhã", de Paul Hindemith, foi fácil seguir a experiência com a verdadeira abertura, essa composta por Wagner, interpretada pela orquestra berlinense em 1998. As assinaturas variam de US$ 13 por uma semana a quase US$ 200 por ano.

A Ópera Estatal de Viena tem um site de streaming cheio de recursos, e a companhia ofereceu uma bela demonstração dele em sua turnê em Nova York este ano. Mas eu não consegui fazer com que o site funcionasse quando o testei este mês. Talvez eu estivesse passando por um mau dia tecnológico, mas recebi uma mensagem de erro ao tentar me registrar online e alugar uma ópera de sua "videothèque". Com isso, Viena –que oferece acesso anual a balés e óperas por US$ 428– terá de esperar, por enquanto.

Mais perto de casa, o Met, que é um negócio mundial florescente na transmissão de óperas em formato stream para salas de cinema, também tem representação na Web: o Met Opera on Demand, que oferece quase 150 vídeos e mais de 360 gravações em áudio de óperas encenadas pelo Met, por US$ 14,99 ao mês ou US$ 149,99 por ano. O processo de assinatura foi como uma refeição de bufê em Las Vegas: eu queria experimentar um pouquinho de tudo. Ainda que não costume ficar zapeando canais por natureza, me apanhei alternando entre óperas a que assisti e outras que queria assistir. Uma das grandes descobertas para mim foi uma produção de "Núpcias de Fígaro", de Mozart, com Cecilia Bartoli, Bryan Terfel e Renée Fleming, em 1998, que eu vi no teatro e sempre sonhei viesse a ser lançada em DVD. Foi divertido testar minhas lembranças da apresentação.

No geral, foi um bom verão para as óperas e sinfonias de poltrona. Mas é claro que nada se compara à experiência real. Tenho certeza de que o Festival de Bayreuth, na Alemanha, absolutamente requer minha cobertura pessoal.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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