Folha de S. Paulo


Dois poemas para ler no bonde

SOBRE O TEXTO Os poemas abaixo fazem parte da antologia bilíngue "20 Poemas para Ler no Bonde" (Coleção Fábula, Editora 34), que será lançada no próximo dia 18. A edição traz ilustrações pouco conhecidas, feitas pelo autor do livro, o poeta argentino Oliverio Girondo (1891-1967). O volume inclui ainda ensaio fotográfico de seu compatriota Horacio Coppola (1906-2012).

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CROQUI NA AREIA

A manhã sai a passeio na praia polvilhada de sol.

Braços.
Pernas amputadas.
Corpos que se reintegram.
Cabeças flutuantes de borracha.

Ao tornear os corpos das banhistas, as ondas espalham seus cavacos sobre a
serragem da praia.

Tudo é ouro e azul!

A sombra dos guarda-sóis. Os olhos das moças que se injetam romances e
horizontes. Minha alegria de sapatos de borracha que me faz pular na areia.

Por oitenta centavos, os fotógrafos vendem os corpos das mulheres que se
banham.

Há quiosques que exploram a dramaticidade da arrebentação. Criadas chocas.
Sifões irascíveis, com extrato de mar. Rochas com peitos algosos de marinheiro e
corações pintados de esgrimista. Bandos de gaivotas, que fingem o voo
destroçado de um pedaço branco de papel.

E diante de tudo está o mar!

O mar! ritmo de divagações. O mar! Com sua baba e sua epilepsia.

O mar! até gritar
basta!
como no circo.

Mar del Plata, outubro, 1920

Divulgação
ilustração de Oliverio Girondo para a primeira edição de seu livro
ilustração de Oliverio Girondo para a primeira edição de seu livro "20 Poemas para Ler no Bonde"

RIO DE JANEIRO

A cidade imita em papelão uma cidade de pórfiro.

Caravanas de montanhas acampam nos arredores.

O Pão de Açúcar basta para adoçar a baía inteira O Pão de Açúcar e seu
teleférico que há de perder o equilíbrio por não usar uma sombrinha de papel.

De cara maquiada, os edifícios trepam uns por cima dos outros e, quando chegam ao alto, viram o lombo para que as palmeiras lhes deem com o espanador na laje.

O sol amolece o asfalto e o traseiro das mulheres, amadurece as lâmpadas
elétricas, sofre um crepúsculo nos botões de opala que os homens usam até para fechar a braguilha.

Sete vezes ao dia regam-se as ruas com água de jasmim!

Há velhas árvores pederastas, desabrochadas em rosas-chá, e velhas árvores
que engolem as crianças que jogam bola no passeio público. Frutas que, ao cair, fazem um buraco enorme na calçada; negros que têm cútis de tabaco, a palma das mãos feita de coral e sorrisos sem-vergonha de melancia.

Por apenas quatrocentos mil-réis se toma um café, que perfuma todo um bairro da cidade durante dez minutos.

Rio de Janeiro, novembro, 1920

OLIVERIO GIRONDO (1891-1967) foi um poeta argentino. O livro "20 Poemas para Ler no Bonde" será lançado no dia 18, às 20h, no Clube das Artes, em São Paulo.

SAMUEL TITAN JR., 43, é tradutor e professor de teoria literária e literatura comparada da USP.

FABRÍCIO CORSALETTI, 35, poeta e colunista da Folha, é autor de "Quadras Paulistanas" (Companhia das Letras), com desenhos de Andrés Sandoval.


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