Folha de S. Paulo


O jornalista e escritor Zuenir Ventura homenageia Elio Gaspari

O texto abaixo foi apresentado por Zuenir Ventura, na quinta-feira (24), em homenagem ao jornalista e colunista da Folha Elio Gaspari no 9º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, organizado pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), na zona sul de São Paulo.

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Antes de qualquer coisa, quero agradecer o privilégio de ter sido escolhido para saudar Elio Gaspari, embora seja quase impossível dar conta dessa tarefa. Como sintetizar a obra e a personalidade de um dos mais ricos exemplos do jornalismo contemporâneo? Nas suas colunas semanais e sobretudo nos seus livros sobre a ditadura militar, que são o painel mais minucioso, profundo e completo já realizado sobre o tema, a prosa jornalística atinge seus mais altos níveis de excelência estética. O texto de Elio é a prova de que numa narrativa se pode usar leveza e graça sem perda de densidade; que é possível oferecer prazer de leitura sem sacrifício de substância; que um admirável equilíbrio permite a coexistência de fatos e interpretação, relato e opinião, análise e síntese. Só ele mesmo é capaz de transformar em agradável fruição o uso imperceptível de 500 livros consultados, 200 pessoas entrevistadas e o exame de 5 mil documentos arquivados.

Apu Gomes/Folhapress
O jornalista Elio Gaspari (esq.) recebe homenagem de Zuenir Ventura no 9º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo
O jornalista Elio Gaspari (esq.) recebe homenagem de Zuenir Ventura no congresso da Abraji

Apesar da busca exaustiva, não se descobre dentro do texto o quanto pesquisou. Suas análises são meticulosas e as sínteses, admiráveis, repletas de humor e ironia. Em apenas duas linhas Elio é capaz de desmontar um círculo vicioso: "O SNI caía em sua própria armadilha. Fazia qualquer coisa porque era capaz de tudo e, como era capaz de tudo, terminava metido em qualquer tipo de coisa". Sobre o governo Geisel: "Quando assumiu, havia uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia um ditador sem ditadura".

Sobre a queda de um general conspirador, um resumo machadiano: "Quando o dia acabou, Frota estava fora do ministério, da política e da farda". Do general Lyra Tavares, que escrevia "naturesa", ele diz: "entrou para a Academia Brasileira de Letras sem jamais ter feito a paz com a gramática". Sobre os efeitos da promiscuidade entre militares e policiais torturadores: "O delegado Sérgio Fleury não ficou parecido com um oficial do Exército. Eram oficiais do Exército que ficaram parecidos com ele".

Com um simples deslocamento de palavras, o autor resume o que significou a Guerrilha do Araguaia, quando os radicalismos ideológicos chegaram a seu clímax: "A esquerda armada supusera que estava no caminho da revolução socialista, e a ditadura militar acreditara que havia uma revolução socialista a caminho". Ele usa imagens e metáforas para quebrar o que detesta: a solenidade de uma situação ou de uma frase. Por exemplo, quando fala dos golpistas. "Eles passaram de um regime constitucional a uma ditadura, distraídos como quem vai à igreja para um batizado, erra de capela e entra numa missa de corpo presente."

Depois de descrever a decomposição do esquema de Jango Goulart, ele resume assim o golpe: "O Exército, que no dia 31 dormira janguista, acordaria revolucionário, mas sairia da cama aos poucos".
O personagem Elio Gaspari é ainda mais difícil de ser descrito porque como não dá entrevista, raramente fala em público e nunca fez uso para si de pronomes pessoais como "eu", os hábitos, preferências e manias que compõem o seu cotidiano são desconhecidos dos seus leitores. Nesse sentido, pode-se dizer que o aspecto mais agradável e divertido dele é não se levar a sério. É impossível passar alguns minutos perto dele sem rir muito.

O número que prefiro é o do cabotinismo. Kid Megalô, como ele próprio se apelidou, defende a tese de que Copérnico criou a teoria do heliocentrismo não por causa do Sol, mas por causa dele, Elio, em torno do qual, como se sabe, gira a Terra. Uma vez escrevi que ele era o mais brilhante jornalista de sua geração. Ele reclamou: "só da minha geração?" Se alguém resolve dizer "Elio, você teria uma ideia..", ele interrompe: "quantas você quer?"

Quando se juntam nele a graça, a inconveniência e a mania de falar mal pela frente, o resultado pode ser uma cena como a que ocorreu ao levar o deputado Delfim Neto para jantar em sua casa. No elevador, encontraram uma moradora do prédio que, ao avistar o ex-ministro, não se conteve: "Ah, ministro, que saudades! Eu era feliz e não sabia". Elio cortou: "A senhora está maluca? Esse homem arruinou o país". Delfim, que já conhecia o número, riu, mas a senhora emudeceu.

Numa reunião de condomínio, o síndico quer proibir o uso do elevador social por uma empregada doméstica, alegando não a cor, mas o fato de o lugar dela ser o elevador de serviço. Elio perguntou: "Não é uma negra alta, bonitona". "Exatamente", foi a resposta. "Mas ela é minha amante". Não se falou mais no assunto.

Dono de uma memória prodigiosa, quando alguém lhe pergunta "como é que você sabe isso tudo?", ele responde: "eu não sei, eu me lembro". É uma humilhação para alguém como eu, que às vezes até sabe, mas não se lembra.

Como editor e diretor, Elio sempre foi muito rigoroso, até autoritário, mas sem perder jamais o humor. Diante da alegação de um chefe do departamento de fotografia de que não podia cumprir a tarefa pedida porque não tinha fotógrafo disponível, ele disparou: "E por acaso estou diante de um vaso chinês?"

Nascido em Nápoles, na Itália, Elio veio com a mãe para o Brasil no pós-guerra aos cinco anos. Permaneceu parte de sua infância num internato em Mangaratiba, enquanto a mãe trabalhava. De volta ao Rio, passou a fazer o científico na Associação Cristã de Moços e a comer no Calabouço, um restaurante para estudantes pobres. Até os 19 anos, quando puderam alugar um apartamento, os dois moraram em quartos alugados na Lapa boêmia e malandra da época.

Foi com essa idade que ele se apresentou ao jornal Novos Rumos, do Partido Comunista, pedindo emprego. Depois da primeira matéria, com o pseudônimo de Elio Parmegiani, o chefe da Redação, Luiz Mário Gazzaneo, previu: "Essa cara vai ser um grande jornalista". A segunda o autorizava a dizer: "Aquelas duas matérias já revelavam o talento e o gênio jornalístico de Elio".

Do Parmegiani ao Gaspari de agora, foi uma variada trajetória: setorista no aeroporto do Galeão, onde cobria a chegada de personalidades, repórter do jornal popular "A Notícia", auxiliar da coluna social de Ibrahim Sued, para a qual trabalhou de 1965 a 68, fuçando a vida mundana do Rio, até editor de veículos como "Veja" e "Jornal do Brasil" e, agora, colunista do "Globo" e da Folha de S. Paulo.

As histórias que se contam dele nesse período parecem lendas, como aliás as demais. Ele era capaz de editar sozinho várias páginas de jornal ou revista com a mesma facilidade com que, após o fechamento, devorava às 7 horas da manhã uma pizza grande, antes de pedir o prato principal, que às vezes era uma feijoada completa.

Com os amigos, Elio mantém uma relação que eles classificam de "lealdade mafiosa", especialmente os que na época pertenciam ao andar de baixo, à choldra e à patuléia, para usar expressões que consagrou. A viúva de um deles, a professora Dora Henrique Costa, resume com uma frase histórias de desprendimentos, que incluem até a perda de um único apartamento, numa desastrada operação financeira conduzida por um amigo de quem nunca reclamou o prejuízo. Ela diz: "O Elio não faz amizade, faz pacto de sangue".

Em tempo: Elio é casado com a jornalista Dorrit Harazim, e a única matéria que os dois fizeram juntos é a melhor de suas carreiras: a Clarinha, ou melhor, minha amiga a doutora Clara.


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