Folha de S. Paulo


Dois King Kongs estão soltos nas matas de Paraty

Há dois King Kongs de três metros de altura soltos na mata atlântica de Paraty. As criaturas não foram criadas pela mente fértil de algum dos 47 autores que passarão pela cidade no fim do mês para a Flip. Os gorilões são concretos, de fibra de vidro, cobertos por pelúcia, que por sua vez foi coberta por musgo.

O par de símios fica a 20 minutos de barco do centro histórico da cidade, em uma praia calma da baía de Bom Jardim, onde até o século 19 funcionava um forte para barrar a entrada de piratas, de franceses e de piratas franceses. Os bichos são história mais recente: estão lá há cerca de duas décadas, depois de terem sido trazidos de uma turnê que compreendeu Brasil e Argentina divulgando o longa, primeiro a furar a barreira de um milhão de dólares arrecadados no Brasil, em 1977.

Os macacos foram presente de Alexandre Adimiu para Sandra Foz. Ele era o presidente da Paris Filmes, que lançara o filme do macaco mais famoso do mundo. Ela, uma paulistana que foi criada entre a cidade e uma propriedade erma nas bordas de Paraty, onde há quase 50 anos seu pai começou a levantar uma casa.

Chico Felitti/Folhapress
Sandi Adimiu e Sandra Foz em sua casa em Paraty
Sandi Adimiu e Sandra Foz em sua casa em Paraty

As efígies de primatas, que hoje ornamentam o gramado da Villa Bom Jardim, foram um dos resultados da união. Outro foi uma sala de cinema privativa que foi levantada ali, a sete passos da praia. A terceira foi a Pousada do Sandi, casa colonial que servira como antiquário e foi transformada em hospedaria há 20 anos, "para Alexandre ter com o que trabalhar aqui", diz Sandra.

Sandi, no caso, era o pai de Alexandre, um romeno que veio para o Brasil e investiu no cinema. A pousada, diz Sandra, serviu "para estreitar as relações com produtores, atores, gente do cinema". Passaram por seus quartos (e pela louça da Hermès da casa de Bom Jardim) nomes como Raul Julia e Marcello Mastroianni ("Se apaixonou por esse lugar depois de sete caipirinhas, ele, que era um fumão", diz ela, que foi condecorada cidadã paratiense em 2008).

A fusão dos dois negócios fazia a pousada rodar o Brasil nos comerciais antes dos filmes do Van Damme em VHS ou nas 170 salas que a Paris chegou a ter por São Paulo (a do shopping do Morumbi era uma delas). O comercial "funcionou muito", diz Sandra. Mas o modo de publicidade foi abandonado no momento em que a empresa passou a focar mais em distribuir filmes do que em exibi-los, de dez anos para cá.

Hoje em dia a Pousada voltou a ser do Sandi. De Sandi Adimiu, 32, o filho do casal que administra os dois negócios da família desde a morte do pai, há 14 anos. Quando está em São Paulo, nos dias úteis, ele planeja o lançamento de blockbusters como a franquia "Jogos Vorazes" (e também sua versão mais pálida, "Divergente") e de filmes nacionais estrelados por Sabrina Sato ("O Teste") ou Leandro Hassum ("Até Que A Sorte Nos Separe 2"). Os quartos da pousada ostentam pôsteres dessas produções nas paredes.

Às sextas, Sandi bota no carro os três cockers (um deles de nome Flipa, flexão feminina de Flip) e toca para Paraty. Dorme na casa da mãe e algumas vezes não dorme nas baladas da cidade. Nestes dias, volta de barco, com o sol nascendo, para a baía (a segunda embarcação da família, O Brasileirinho, não tinha sido estreada até dez dias atrás, em parte pelo tempo fechado e em parte pela campanha pífia da seleção brasileira).

Outros barcos tentam ver os símios de fibra de vidro e limo, em vão. As escunas locais, que oferecem passeios de quatro horas por R$ 25, param na baía de qualquer maneira. Interrompem a trilha sonora ao vivo, com clássicos de Djavan e Ana Carolina, para anunciar que naquele terreno há duas estátuas. "Aqui ao lado vocês veem a baía de Bom Jardim, que tem dois King Kongs no jardim. Para você ter uma ideia, só o terreno vale R$ 12 milhões", diz o cantor do barco, que também serve de guia.

Tal preço não inclui conta de luz. A fiação para energia elétrica deve chegar a Bom Jardim neste ano, "se Deus ajudar", ainda que a construção tenha sido começada há 45 anos. Não que faça diferença, o gerador dá conta de sustentar TVs e um wifi melhor do que o da cidade."Se não quisermos, nem precisamos sair", diz Sandra.

Mas as próximas semanas serão em Paraty, nos preparativos para a Flip. A organização da festa pede cinco ou seis quartos para alocar escritores e editores convidados. Os outros 20 e tantos já estão reservados para o ano que vem antes de a festa deste terminar. "Varia muito pouco, são quase sempre as mesmas pessoas", diz Sandra,

Mas às vezes chega alguém inesperado, caso de Chico Buarque em 2009. Enquanto Sandra quase perdia a fala ("Foi a única pessoa que fiquei impressionada, muito impressionada, de ver de perto"), Chico passou pela mesa de moquecas e cachaças locais, antes de jogar uma pelada com moleques que usavam o gramado em frente à igreja como campinho.

Durante a festa, os principais lançamentos literários da temporada se somam às instalações de cada quarto. "É uma relação muito boa que temos com a arte", diz Sandra.

A ver como a pousada que nasceu do cinema se sairá com concorrência focada nos livros. Esta será a segunda Flip da Pousada Literária, aberta a dois quarteirões do Sandi onde até anos atrás funcionava o hotel Coxixo, uma instituição local. O novo empreendimento, que os locais sussurram ter participação da família Marinho, parece cenário ideal para um filme do Woody Allen, com móveis de design em madeira escura, iluminação indireta e uma biblioteca central resistindo à umidade da cidade praiana.

"Tem lugar para todo mundo", diz Sandra, "a mudança é boa". Inclusive em casa: o cômodo que foi um cinema em breve pode virar uma academia.


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