Folha de S. Paulo


Documentário em produção recoloca Nuvem Cigana no horizonte

Além das reedições recentes de nomes cruciais da poesia marginal, pela Companhia das Letras –que em um ano e meio colocou no mercado a obra poética completa de Paulo Leminski, Ana Cristina César e Waly Salomão–, agora, com a presença, de Charles Peixoto na Flip, lançando sua poesia reunida, "Supertrampo" [7Letras, R$ 39, 200 págs.], é a vez de a Nuvem Cigana se aproximar do horizonte dos leitores.

O coletivo carioca ao qual pertenceu o poeta e roteirista Charles será tema, também, de um documentário, produzido por Paola Vieira e por Claudio Lobato, ele mesmo ex-membro do grupo que agitou o Rio nos anos 1970-80.

"As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana" encontra-se em edição, à espera de mais recursos para ser finalizado. Mas parte do material coletado pela dupla para o filme pode ser visto abaixo em teaser para divulgação. Leia a seguir entrevista com Claudio Lobato e Paola Vieira.

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Folha - De onde surgiu a vontade/ideia de fazer esse documentário?

Claudio Lobato - Na comemoração do aniversário de 30 anos da Nuvem Cigana, em 2005, fizemos uma festa no Parque Lage. Para o evento editei um clipe de cinco minutos, reunindo fotos e poemas. A rapaziada vibrou, e senti que aquilo podia crescer.

Paola Vieira - Eu conhecia a Nuvem através do Chacal, com quem trabalhei nos anos 90 numa serie de TV sobre verão e o Carnaval. Depois o Claudio foi roteirista de "20 Anos de Suvaco", documentário que fiz em 2007 sobre o Suvaco do Cristo, um bloco de carnaval do Jardim Botânico. Na época ele já tinha a ideia de fazer um curta-metragem sobre a Nuvem Cigana, já tinha feito umas entrevistas, reunido parte do material, até que, em 2008, a gente entrou no projeto –eu e minha produtora, a Diversão e Arte. Chegamos a tentar captar para esse formato, mas, conforme fomos trabalhando vimos que tinha que ser pelo menos um media, 52 minutos. No momento está difícil baixar de 80 minutos.

Em que etapa de produção está o filme?

Lobato - Depoimentos gravados, muito material de arquivo recolhido e um mosaico psicodélico montado minuciosamente com o auxílio luxuoso de Piu Gomes na edição e Mauro Heitor no videografismo.

Vieira - Apesar de termos um roteiro, a gente abriu para ouvir a história contada pelos personagens, não só a história da Nuvem, mas muito sobre o contexto e os significados das coisas vividas na época, hoje, incluindo a versão do próprio Claudio, que é personagem-autor. A pesquisa também foi imensa. O volume de material ficou gigante, e a montagem teve que ir depurando tudo isso, o que levou um bom tempo. Estamos num segundo corte, mas já com uma forma bem definida, e continuamos mexendo. Agora o processo está mais lento, pois precisamos captar mais antes de finalizar.

Qual é, em termos gerais, a linha que vocês escolheram para contar essa história?

Lobato - A linha é "Firme no leme que a reta é torta" como diz uma das frases/slogans inseridos nos Almanaques [publicação do coletivo Nuvem Cigana]. O filme é uma grande colagem. Poesia documental? Babilaque poético? Os depoimentos dos personagens envolvidos, entremeados por poemas visuais e imagens documentais, fazem paralelos com o que rolava no mundo em transformação dos anos 1970.

Vieira - A gente quis fazer um filme abrangente, sobre uma turma, num momento histórico especifico, numa cidade, num país que vivia em uma ditadura, mas sem querer ser só um filme histórico. A ideia foi também fazer um filme sobre a poesia, a poética dessa turma, os desenhos, as fotografias, os filmes, a alegria, o Carnaval, a utopia –e a nossa visão hoje sobre tudo isso.

O que foi a Nuvem?

Lobato - Uma rapaziada, um time de pelada, um bloco de Carnaval... "uma tropa rumbeira de guerreiros sentimentais descolonizados, corações muçulmanos, mamelucos, malucos, macumbeiros" (como disse o Charles) Uma irmandade que comungava uma força vital no prazer, na batalha pela sobrevivência e na resistência contra a contrariedade.

Existe hoje uma espécie de "ressurgimento" da poesia marginal, em parte propelido pelo sucesso inesperado que foi a poesia reunida do Leminski. A que vocês diriam que se deve esse interesse? O que há naquele momento que ressoa na nossa atualidade?

Lobato - A necessidade de se reinventar e de se divertir com isso. De tirar "chinfra" com a cultura e a civilização. Ampliar o campo do possível como disse o Sartre, aos estudantes em 68. Poesia é artimanha, e Artimanha é o nada incrementado, como já disse o Chacal.

Vieira - O mundo andava muito chato de uns tempos para cá, muito duro, com todo mundo querendo fazer tudo certo, para vencer num ambiente muito competitivo e materialista. Embora o contexto seja outro, a poesia marginal teve naquela época também essa função de romper, de mudar o foco. Hoje vejo também essa necessidade de questionar o que parecia estar estabelecido, de olhar além, procurar outro olhar sobre as coisas, abrir possibilidades.

Qual é o maior "legado", se é que essa palavra não soa solene demais, que a Nuvem deixa no horizonte? Foi a questão da autoedição? Foi a questão da performance? Existem herdeiros para o que esse coletivo significou?

Lobato - Pra mim, é a capacidade de criar nas condições mais adversas e tirar proveito disso. Há muitos herdeiros da Nuvem espalhados pelo Brasil, tenho certeza disso. Desde o Circo Voador, o mangue beat, tudo que inventa e desconcerta como os coletivos que hoje estão ocupando espaços urbanos em SP e RJ, de que eu tive notícia.

Vieira - Para mim foi essa descoberta de que havia outros caminhos possíveis para viver de forma mais poética, mais livre, num contexto de violência. E o fato de ser um coletivo produtivo, expressão de muitos artistas diferentes, não só poetas, que vejo também como novidade. Nesse sentido o Circo Voador foi o herdeiro mais imediato.

A forma de eles falarem e fazerem poesia e a vontade de torná-la mais mundana, mais parte da vida e da festa, deixaram um monte de herdeiros. O próprio Chacal seguiu fomentando herdeiros, está há mais de 20 anos por aí fazendo o CEP 20.000.

Como se definiria a poesia dos membros da Nuvem, depois que o coletivo se dissolveu?

Lobato - Os poetas que participavam da Nuvem Cigana têm estilos próprios, e isso era o que enriquecia as publicações coletivas e as Artimanhas. Comum a todos, a palavra falada. E mesmo passando pela fala, a poesia vai tomando formas diferentes, algo que fica muito claro no filme. Bernardo [Vilhena, que também tem obra reunida agora, pela Azougue] é mais musical, Charles é discurso, comício delirante.

Hoje vivemos um momento truculento, em que não parece possível fazer essa carnavalização do protesto. Gostaria que vocês comentassem.

Lobato - A carnavalização surge justamente como uma espécie de defesa, de blindagem contra a truculência oficial. Como uma reunião de mais de cinco era vista como subversiva, jogava-se pelada. Era subversivo se manifestar nas ruas, botar um bloco na rua. Hoje, a truculência aparece manipulada, encobrindo o que precisa ser manifesto. Ser truculento com a truculência é a forma que encontraram de esvaziar as expressões que precisam continuar existindo para que a sociedade se transforme de verdade.

Vieira - Acho que, mesmo havendo truculência em muitos dos manifestos de hoje, quando começaram a acontecer, em junho de 2013, eles vieram com muito humor, muita irreverência no discurso, nas fantasias, nos cartazes. As pessoas perceberam que podiam ir pra rua se expressar, e isso trouxe uma alegria imensa que se espalhou. O humor, a irreverência e a rua têm tudo a ver com o Carnaval.

Na época da Nuvem, a carnavalização promovida por essa turma era mal vista, como bobagem de alienados, pela esquerda, e como subversão de drogados, pela direita. Como hoje também a política anda muito polarizada, as forças que não tinham um lado definido acabaram se recolhendo um pouco, o ódio acabou se sobrepondo à alegria nos protestos. Mas essas forças estão todas aí, a bola está rolando ainda.

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Veja o teaser do filme "As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana"

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