Folha de S. Paulo


Miyuirã keyuamaki: a história não se acaba

Aeroporto Plácido de Castro, Rio Branco, 8 de maio de 2014, 11h da manhã. O restaurante a quilo do aeroporto da capital acreana está quase vazio. É ocupado apenas por um homem e um bem-te-vi. Nenhum dos dois emite som. O homem se alimenta de peixe com purê de batatas. O bem-te-vi saltita entre espaldares de cadeiras com intrépido vagar. O pássaro aproxima suas patinhas da refeição do sujeito. Bica migalhas entre o suco e o prato de comida. O homem executa movimentos lentos e ritmados. O passarinho o faz companhia.

O homem de estatura mediana e pele jovem é cacique. Chama-se Zezinho Yube, é cineasta, assessor especial dos povos indígenas do governador do Acre e filho de Joaquim Maná, o primeiro indígena acreano a graduar-se no mestrado. De olhar terno e fala pausada, cada palavra de Zezinho parece nascer do encontro entre mente e coração. "Na aldeia a vida é melhor, as pessoas são donas do tempo, na cidade o tempo é dono das pessoas", reflete, enquanto aguarda, com um grupo de seis pessoas, entre elas o antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias e o artista plástico Ernesto Neto, a partida do bandeirante de 14 lugares que os levará ao município de Jordão, caminho para a aldeia de São Joaquim, onde nos próximos dias acontecerá a festa de lançamento de "Una Isï Kayawa –Livro da Cura do povo Huni Kuï do rio Jordão", realizado pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico em parceria com a Dantes Editora.

Primeiro eram chamados Huni Kuï, depois passaram a ser conhecidos como Kaxinawá. Huni Kuï quer dizer "gente verdadeira" e Kaxinawá significa "gente do morcego", um apelido incorporado a partir dos primeiros contatos de indígenas com brasileiros e peruanos, à época dos seringais, começo dos 1900. O apelido pegou. Demorou cem anos para esta população –que em 1975 contava com 350 pessoas e hoje soma quase 10 mil humanos, divididos entre Brasil e Peru– voltar a preferir ser chamada pelo nome de origem, avolumando a narrativa de resgate da autoestima Huni Kuï, de que o "Livro da Cura" é uma das mais altas penas do cocar.

Camilla Coutinho/Divulgação
A ideia do livro nasceu do pajé Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru, que morreu durante a realização do trabalho.
A ideia do livro nasceu do pajé Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru, que morreu durante a realização do trabalho.

O livro é fruto de uma semente que começou a germinar nos sonhos do pajé Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru 20 anos atrás. Se nos anos 70 está a aurora das primeiras lutas pela demarcação das terras Kaxinawá, os anos 80 consolidam avanços e expandem a batalha, agora também pela formação de agentes de saúde e professores para fortalecer e ensinar a língua nativa, o hatxa Kuï. De modo que, nos anos 90, apesar de precárias do ponto de vista branco, as condições materiais mínimas começavam a ser asseguradas –era possível sonhar com a manutenção do patrimônio imaterial, cultural, dos Huni Kuï.

"O modo como os pajés obtêm os conhecimentos sobre as plantas não é muito diferente do modo como os cientistas obtêm conhecimento sobre as espécies. Pajés e cientistas apenas usam métodos diferentes e configuram dois níveis diferentes de consciência", escreve o coordenador geral do Centro Nacional de Conservação da Flora do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico, Gustavo Martinelli, na apresentação do volume. Foi ele quem deu a luz verde ao projeto, depois de o taxonomista e botânico Alexandre Quinet tê-lo apresentado ao sonho do Ïka Muru, que ele próprio conhecera através de Siã, o cacique geral do povo Huni Kuï, e de Luisa Brettas, do Instituto Guardiões da Floresta. Curioso, o botânico viajou ao encontro do pajé e assegurou que levaria a ideia adiante. "O projeto vem de encontro às metas da convenção da biodiversidade, de que o Brasil é signatário. É um material tão importante pro povo Kaxinawá quanto pra conservação da nossa biodiversidade", diz ele. O último ponto da costura foi o convite feito por Gustavo à editora Anna Dantes, para participar da aventura. Era possível começar.

A primeira viagem até o Alto Juruá acontece em agosto de 2011. O objetivo era discutir o sumário do então "Livro Vivo" com Agostinho. O desconcerto foi geral quando ele revelou que o "Livro Vivo" já estava sendo feito pela editora da UFMG. O volume, que sairia em 2012, é organizado a partir dos jardins dos pajés Agostinho e Dua Busë, apresenta os nomes das doenças e das medicinas, tem as cópias das ilustrações dos seus cadernos de estudo. É um convite aos pajés e aprendizes para entender seu próprio ofício e material de trabalho: as ervas medicinais. Quase inteiramente em hatxa Kuï, o "Livro Vivo" da UFMG solapava o projeto da equipe carioca.

Anoiteceu e amanheceu e Agostinho deu a solução para o problema: fazer um outro livro que mais tarde se chamaria "Livro da Cura", expandindo e aprofundando o estudo iniciado no "Livro Vivo". No novo volume, as plantas seriam apresentadas segundo sua divisão mítica nos quatro grandes partidos (Dau, Inani, Inu, Banu). Haveria o estabelecimento de diálogo entre a taxonomia botânica e o conhecimento espiritual Huni Kuï, fornecido agora não só por Agostinho e Dua Busë, mas por todos pajés do Alto Juruá. O coração pulsante da história voltava a bater.

Em final de novembro de 2011, o pajé Agostinho viajou durante seis dias em um barquinho motorizado, parando em cada uma das 37 aldeias para entregar convite e combustível que possibilitasse o deslocamento dos pajés na data do evento. A bordo estava também a fotógrafa Camilla Coutinho, que já vinha desenvolvendo há alguns anos um trabalho com os Huni Kuï e fora convidada a integrar o time. O grande pajé visitou os jardins medicinais de todas aldeias, recolheu mudas, trocou experiências e afirmou a importância da discussão. "Os mais antigos sabemos mais ou menos o significado de cada uma dessas espécies, mas estes jovens, eles estão estudando agora. É agora que eles vão começar a reconhecer o nosso documento, a nossa identidade, a biodiversidade da natureza que nós temos. Esse ouro na mão que nunca destruímos."

ESPÍRITO DA FLORESTA

Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru nasceu em 1944, no rio Tarauacá, no seringal Seretama, no "tempo dos patrões", época em que seringalistas vencedores da invasão às terras indígenas se tornaram proprietários e patrões da borracha, contratando índios e seringueiros analfabetos para trabalhar na base da diária e viver dentro de suas propriedades em colocações (pequenas faixas de terra, onde colocava-se casa e roçado), trocando borracha pelo aluguel e por mercadorias da venda, numa conta roubada e impossível para os indígenas –desconhecedores da matemática–, que os arrolava em dívidas eternas, pagas com uma vida de escravidão.

Até os 19 anos, o baluarte dos saberes Huni Kuï só conhecera luta. A cultura Kaxinawá havia se perdido nas veredas das matas, no "tempo das correrias", começo do século 20, quando as terras indígenas foram invadidas por caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros, no recomeço do fim, com cheiro de pólvora e som de gritos, doenças de branco e malocas em chamas, na disputa pela borracha, que dizimou populações inteiras e obrigou os sobreviventes a migrar. Um grupo seguiu para uma área bem distante da ganância e da desgraça, montando kupixawas (maloca com piso de terra batida ou tablado de madeira, sem paredes, com telhado duas águas comprido feito de palha), no alto rio Gregório, perto do riozinho da Liberdade, onde algumas famílias puderam se fixar, procriar, resistir. E foi em visita à aldeia de Purus, cujos dias eram vividos como antigamente, que o órfão Agostinho Ïka Muru encontrou, pela primeira vez, sua cultura. Viu os kenes (padrões gráficos para composição de adereços, roupas e artefatos), participou das festas, escutou cantos e histórias do povo Huni Kuï. Entendeu na pele, pintada de jenipapo e urucum, que cultura é poder.

Demorou até conseguir dar os primeiros passos rumo a autonomia de seu povo, que se arrastou por causa da dependência das mercadorias dos patrões, até final dos anos 70, quando a Comissão Pró-Índio do Acre deu vigoroso e definitivo apoio ao pioneiro movimento das cooperativas indígenas, enchendo um barracão de produtos para serem trocados por borracha entre nativos, liberando-os das negociatas dos patrões. Quando a Funai começou a trabalhar na demarcação das terras Kaxinawá, em 1980, não havia patrão no horizonte.

Junto ao velho Sueiro e seu filho Getúlio, Agostinho se torna uma das lideranças indígenas do novo movimento político, que contava ainda com educadores, membros da sociedade civil e antropólogos, como Terri Valle de Aquino e Marcelo Piedrafita Iglesias. Agostinho viaja para discursar em outras aldeias sobre a experiência das cooperativas, o direito à demarcação e a importância da formação de professores e agentes de saúde indígenas. Viaja para discursar em Brasília, Rio Branco, São Paulo. Viaja por décadas, consumidas na missão cujo apogeu é a demarcação e homologação de 45% das terras acreanas, patrimônio brasileiro, guardado pelos povos indígenas.

Ainda no "tempo dos direitos", em uma passagem pelos Ashaninka do rio Amônia, também no Acre, próximo à fronteira com o Peru, o Ïka Muru tem uma epifania. Em um ritual de ayahuasca, que na língua deles chama-se Nixi pae, o dono da ayahuasca lhe disse: "Você só fica falando em português sobre os patrões, a luta do seu povo. Cadê a sua história? O que você sabe da sua cultura?", escreve o pajé na autoapresentação do livro "Nixi pae –O espírito da floresta", de Ibã Sales. E a partir de então, Agostinho, que de índio cativo passara a seringueiro, daí a líder político, se transformaria em outro, mergulhando nos segredos das florestas, de onde emergiria pajé.

LIVRO DA CURA

3 de dezembro de 2011 foi o primeiro dos 15 dias de oficina MIbã, quando foi feita grande parte dos registros para o "Livro da Cura". Cada uma das aldeias enviou seu pajé, com esposa e filho aprendiz. São Joaquim estava em polvorosa quando os trabalhos foram abertos com discurso de Agostinho: "Esse material não vai ficar mais escondido, como era. Agora está ficando na mesa, para todo mundo ver, para todo mundo estudar para que serve... A gente vem cuidando há muito tempo da natureza, nós temos sociedade com a natureza. Natureza cuida de nós e nós cuidamos dela. Por quê? Se nós destruíssemos tudo aqui, não tinha essa sombra, não tinha espaço de preservar nossas culturas, a nossa riqueza, a nossa biodiversidade que temos na floresta e que nossos povos se transformaram para cuidar de nós", disse ele, diante da plateia, que anotava e desenhava suas palavras em caderninhos distribuídos no kit preparado por Anna Dantes, junto com bolsa e lápis de cor.

O encontro começava de manhã cedo e seguia até a noite. Os primeiros dias foram consagrados à apresentação dos pajés que, chamados um a um, entravam no centro do kupixawa cantavam, falavam seu nome e exibiam as mudas que haviam trazido. Depois, as mudas eram plantadas dentro de cada partido (dua/banu e inani/inu) e o próximo pajé continuava o ritual. Feitas as apresentações, os dez dias seguintes foram dedicados às aulas, nas quais cada pajé explicava as plantas que escolhera trazer e seu uso. Havia debate a respeito de nomes e outros usos. "A história dos brancos tem os livros... A nossa temos só nas histórias que contamos. Não tem essa publicação ainda", disse o pajé Agostinho sobre a mudança de paradigma que o objeto livro, caudatário de uma já longa linhagem de publicações sobre seu povo, coloca.

Quando se folheia esta edição, a frase acima ganha um sentido ainda mais potente, graças a sua beleza e engenho. "O Darcy Ribeiro dizia que as índias capricham nos artesanatos e artefatos pra que a beleza deles as represente. O livro foi feito com essa ideia em mente. É um bordado, um kene, que junta informações que vieram de diferentes procedências, como acadêmicas e de conhecimento tradicional indígena, criado de forma participativa a partir de relatos orais e de mais de oito viagens que envolveram idas a florestas e residências de tradutores e transcritores do hatxa Kuï no Rio de Janeiro", diz Anna Dantes, que teve a ideia de imprimir a tiragem em papel pet, reciclado das garrafas plásticas. "Eu já vinha desenvolvendo uma pesquisa sobre papel. Conhecia os efeitos devastadores da umidade sobre livros e, na hora em que recebi o convite deste trabalho, pensei: temos que fazer uma edição impermeável", conta ela, que elaborou ainda uma fonte Huni Kuï, extraída das letras maiúsculas das anotações tomadas durante a oficina, usada no livro e depois disponibilizada aos teclados dos computadores dos Kaxinawá.

Durante a oficina, realizada na época das chuvas, os temporais eram cotidianos. Mas uma rajada de águas ficou na memória, quando a torrente levou ao chão a gameleira de raiz centenária e galhos tortos, que ficava no centro da aldeia, pendendo para um dos lados, castigado com o excesso de peso. A frondosa árvore, remanescente da mata nativa, descansou sobre o solo, abrindo uma dramática cratera e fazendo correr calafrios de mau presságio, abafados com o cessar da chuva, quando um nítido arco-íris cobriu São Joaquim.

Os três últimos dias do encontro foram dedicados às expedições na mata para coleta de plantas importantes que ficaram ausentes da discussão. Os pajés Sávio e Dua Busë se embrenhavam na floresta com a fotógrafa Camilla Coutinho Silva, que registrava as dez espécies coletadas, até a volta dos expedicionários ao kupixawa, onde as discussões sobre usos e nomes seguia, até outra dupla de pajés sair e mais um lote de plantas ser trazido para o avançar dos estudos. "Algumas plantas são difíceis de achar", recorda a fotógrafa, "então os pajés as procuram chamando a cantoria pra ver se a planta aparece. Quando um grita, todos vem ao seu encontro pedir permissão à planta pra cortar e coletar. Às vezes seu Agostinho encontrava uma planta e ficava sentado ao seu lado, sozinho, cantando. Depois levantava e não recolhia. Ele dizia que eram plantas que não se fala nem o nome, estão no encantado e não entraram no jardim porque devem continuar sendo segredo".

A oficina acabou às vésperas do Natal. Das 351 espécies listadas nos cadernos dos pajés, 196 foram plantadas no Fundo do Segredo e coletadas pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico, como parte do acervo do herbário. Cento e nove espécies foram selecionadas para entrar no livro. A editora e o organizador da obra voltaram para casa com o material em mãos. Os convidados ganharam mais combustível e viajaram até o entreposto no Jordão, para fazer as últimas compras do ano. Camilla e Isaka, filho do seu Agostinho, decidiram passar o Natal na aldeia Novo Segredo. Subiram o rio no mesmo dia em que Seu Agostinho o desceu, rumo ao Jordão, para resolver alguns negócios.

A aldeia do Novo Segredo é a última do território Kaxinawá. A cerca de onde moram índios "isolados", também conhecidos por "bravos", adjetivo que suas flechadas ou ataques repentinos não deixam esquecer. Navega-se rio acima por cinco dias até portar numa terra repleta de árvores frutíferas e águas transparentes. Não à toa, ao ouvirem o ronco de um barco na noite, todos estranharam. Largaram nos pratos as carnes de jabuti, macaco e porquinho do mato, sobras da ceia natalina, e foram ver o que era. Chegava a notícia da morte de seu Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru.

SONHO DE AGOSTINHO

Em Jordão, o pajé não se sentira bem. Fora hospitalizado, tratado e, no dia seguinte, quando teve alta, estava melhor. Voltou para São Joaquim, mas na mesma noite teve dores. Tratou-se com a medicina da floresta e no dia 24 de dezembro celebrou o Natal. Sentia-se animado quando mandou chamar os filhos, pois queria escrever uma carta de agradecimento para ficar na última página do livro. Começou a contar que o livro era uma herança, um registro de sua vida para filhos, netos e amigos. Agradeceu a todas as plantas medicinais a cura recebida e sua transformação numa outra vida. Levantou-se dizendo que precisava ir ao banheiro. Voltou do mato cambaleante, agonizou na rede e partiu, cercado pelo carinho dos filhos e da esposa Dani.

O enterro de Agostinho mobilizou aproximadamente 400 pessoas chorando e cantando em volta de seu corpo durante dois dias, no festejo de passagem do pajé, para que encarnasse bem em Yuxibu (o espírito criador de todas as coisas). As madeiras das paredes de seu quarto foram usadas na caixa onde o corpo de Ïka Muru foi colocado. O sepultamento aconteceu no Fundo do Segredo, com o jardim medicinal ao redor. A terra pela qual ele tanto lutou cobriu-lhe o corpo, e foi enfeitada com plantas, cocar, colar e o caderno da oficina. A velha árvore frondosa do povo Huni Kuï desaparecia deste mundo.

"Quando recebi a notícia, meu chão caiu", conta Anna, "eu já tinha trabalhado com latim, com paleografia etc., mas alguém da universidade podia me ajudar. Agora nas minhas mãos estava a responsabilidade de levar adiante um sonho do seu Agostinho, que envolvia toda a comunidade Huni Kuï. Precisava integrar um material oral, falado em hatxa Kuï, a uma visão acadêmica e cartesiana como a taxonomia. E as duas pontas deveriam ser legítimas para a outra. O livro era dos Huni Kuï e dos botânicos. Mas como avançar sem o seu Agostinho? Achei que não sairia".

O trauma não foi só para ela, mas para toda a família. Os filhos agora assumiriam o lugar do pai. Isaka é o primeiro a vir ao Rio de Janeiro transcrever as histórias dos antigos e traduzi-las para o português. O etnobotânico Pedro Luz encara o material falado em português. Finda a etapa, Alexandre e Anna percebem a ausência de uma série de informações. É marcada uma nova viagem e o pajé Dua Busë orienta a pesquisa. Aí começa um longo e vasto trabalho do organizador, Alexandre Quinet, de identificação e descrição, numa forma que conciliasse o padrão taxonômico a um texto palatável aos iniciantes indígenas. Em paralelo, Alexandre destrinchava burocracias atrás das autorizações necessárias a publicação (licença da Funai, do Iphan, do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). Com todo o material autorizado e reunido, as últimas etapas foram as revisões, feitas por Itsairu, o primogênito de Agostinho, e Quinet. Por segurança, uma boneca do livro ainda foi levada ao Alto Juruá, para a revisão final junto aos pajés. O livro estava pronto para a gráfica.

As 48 horas da festa do lançamento do "Livro da Cura" foram fartamente comemoradas. No primeiro dia, houve distribuição e festejos. E, no segundo, a assembleia para decidir se haverá venda em livrarias. O evento começou a ser organizado com três meses de antecedência, e revela o cuidado com que a equipe editorial conduziu o processo. Pois, embora esta não seja a primeira "publicação Kaxinawá", nenhum outro foi lançado entre eles com esplendor. Para tanto, um kupixawa foi construído no centro da aldeia. Alexandre Quinet subiu o rio a distribuir convites e combustível. Dinheiro foi arrecadado para a compra de seis bois inteiros, oferecidos aos 200 presentes. E, quando a manhã do grande dia clareou, no sábado 10 de maio, São Joaquim já estava lotada, mas não paravam de chegar barcos. E todos visitantes eram saudados com gritos de alegria.

"Nós que aqui estamos fazemos parte do sonho do seu Agostinho, fomos todos sonhados por ele", disse Anna Dantes, enfeitada com inúmeros presentes que ganhara das índias, a coordenar a pendura das páginas ampliadas do livro, ao redor de varais no kupixawa, de modo que todos pudessem ver/ler o livro vivo materializado.

As mulheres estavam adornadas com tiaras, pulseiras, anéis, colares, brincos, tornozeleiras etc, feitas por elas com miçangas, que até hoje fazem seus olhos brilhar como os diamantes para as brancas. Usavam saias em camadas, de estampas misturadas numa estética "tipo herdei" de resultado ousado e belo. Ocupavam metade do kupixawa, sentadas no chão, sobre esteiras trançadas com palha, a fazer artesanatos, numa ação da oficina de mulheres para troca de conhecimento entre mestras-artesãs e as novinhas.

Na outra metade do espaço, ficavam os homens. Sentados em bancos de madeira, com o cacique local, Tadeu, também filho de Agostinho, em uma mesa. Tadeu vestia cuzma com padronagem de kenes, feita de algodão plantado e colhido pelas índias, tingido com sementes. Ele é um homem de braços fortes, tesos e avermelhados como o barro. Usa colares de miçanga e, sobre a cabeça, exibe um enorme cocar de penas de gavião escuras e pontas brancas, a descer-lhe até os joelhos. Os pés estão descalços e bem plantados sobre o chão. Como todos ao redor, Tadeu tem o rosto pintado com urucum e jenipapo. Ninguém usa o famigerado shortinho com chinelas. Ao contrário, cada qual ostenta um look mais elaborado, estilo tradição reinventada.

O cacique convida as lideranças a ocuparem o centro do kupixawa. Cada um discursa na língua e canta, enquanto os outros escutam em silêncio dedicado e atento. Ao fim da fala, felicitações com gritos animados que lembram o piar de grandes pássaros e buzinas de tabocas tocadas por mulheres, o fecho é a palavra haux - saudação equivalente a "salve".

Camilla Coutinho/Divulgação
No centro, o pajé Dua Busë, do povo Huni Kuï, numa das imagens que estão no
No centro, o pajé Dua Busë, do povo Huni Kuï, numa das imagens que estão no "Livro da Cura", com conhecimentos medicinais tradicionais.

Na sequência, a equipe do livro é convidada a falar e sentar-se à mesa com o cacique. A palavra sonho e a ideia de ter sido instrumento de trabalho atravessa o discurso de Alexandre, Gustavo, Anna e Camilla. Todos são acolhidos com chuvas de haux. Então, Zezinho Yube é chamado. Fala na língua e passa ao português enaltecendo a floresta, pois "mais rica que pasto ou xisto é a sabedoria dos pajés, das plantas". Toró de haux e tabocas. Quando o silêncio se faz, Tadeu convoca txai Marcelo, o antropólogo e também assessor especial de assuntos indígenas no governo Tião Viana, pessoa adorada pelos "kaxís", como ele se refere, por, entre outros laços, ter lutado ao lado deles a batalha da demarcação das terras. Txai é modo de chamar um amigo, palavra que na origem significa "possível cunhado". Txai Marcelo deixa seu caderno e caneta sobre a carteira que ocupa e adentra o cupiaxuá a dizer de sua alegria por estar de volta ao Juruá, dez anos depois da última viagem, e verificar o quão bem os Huni Kuï estão tratando suas terras. O antropólogo frisa ainda que: "O grande remédio que vocês estão dando ao mundo não está neste livro, mas na decisão firme de recuperar suas tradições, na falta de ressentimento com o branco, no acolhimento do povo, na alegria com que recebem, festejam, comem e compartilham os alimentos". Haux, haux, haux.

Através de um cano de plástico preso a um rabo de tatu, ecoa o sinal do almoço. Macaxeira cozida, banana da terra cozida, arroz, caiçuma, carne de boi com farinha de mandioca são servidos pelas mulheres nas várias cozinhas da aldeia, sobre uma esteira de palha, ao redor da qual todos se alimentam. Não há tempo para se refastelar em redes, logo o rabo de tatu faz-se ouvir novamente, convidando o povo para a distribuição dos exemplares.

O CONHECIMENTO

Coração da Floresta, Chico Curumim, Bom Futuro, Novo Natal, Morada Nova etc. Uma a uma, as aldeias são anunciadas, e a caixa com os livros é entregue a seus pajés. Ao contrário do que se pode imaginar, não surge um velhinho claudicante. O "Livro da Cura" é passado a uma esmagadora maioria de jovens pajés, a um tempo meninos e pais de famílias numerosas, ainda em franca formação nos mistérios da floresta. A roda do conhecimento gira através das gerações, legando aos novilhos a responsabilidade sobre o conhecimento das medicinas, recuperada pelos antigos, e agora lhes oferecido.

A medida que o sol cai em São Joaquim, a fumaça das fogueiras sobe. Todos se unem em uma grande roda para entoar cantos de agradecimento e as atividades do dia são encerradas. Hora de banhar-se na cacimba ou no rio. Hora do descanso para os homens. Hora de recolher as roupas dos varais para as mulheres. Hora do bate-papo. Um jantar leve é servido pouco antes do início da enorme festa-ritual, movida a ayahuasca, rapé, cantos e danças, que raiam o dia para os mais animados.

A manhã seguinte surge chuvosa. A água desce suave e contínua. Um convite à interiorização necessária ao longo da assembleia. Anna e Alexandre tomam café e se recolhem, a repassar mentalmente os pontos centrais de seus discursos, em favor do prosseguimento do trabalho. Ernesto Neto profetiza: "o mundo precisa conhecer os índios, o Brasil deve parar de tratá-los como imigrantes e assumir sua dimensão de matriz". O livro pode trabalhar neste sentido, mas depende do veredicto Huni Kuï.

Abriu o conhecimento, perdeu? Ou abriu e todo o mundo sabe que aquele conhecimento é do povo Huni Kuï? Se aberto, o dinheiro da venda será revertido em quê? Em jardins medicinais? De que modo este recurso será gerido? Por quem? Quanto os envolvidos no trabalho devem receber? Estas são algumas das questões que influenciam a vida de todos e serão decididas por todos. Repete-se a estrutura do dia anterior, com Tadeu conduzindo o debate. Apesar de cacique da aldeia de São Joaquim, ele não manda em ninguém. Organiza e diz o que pensa, assim como faz cada líder quando convidado. Os discursos são longos e na língua. Pipocam números em português, assim como uma ou outra palavra, como: herança, sala de aula, perspectiva, encontro.

Uma panela de quinze litros de caiçuma fumegante é servida. São poucos potes para tantas bocas. As tigelas são compartilhadas por grupos de cinco pessoas. Alexandre e Anna aguardam o resultado da votação. Um cão dorme sobre as cinzas de uma extinta fogueira, crianças peladas mamam nos peitos de suas mães. Um a um, os homens emitem seus votos na língua. Somente duas mulheres são consultadas. Ozélia, a filha mais velha do grande Sueiro, e Ayani, a primogênita de seu Agostinho Ïka Muru. Finalmente, o resultado. A flor da experiência Huni Kuï, civilização fundada no amor à Natureza, será compartilhada. Dilúvio de haux e está findo o dia, fração do tempo consagrado às atividades materiais, para dar lugar à noite, aurora da verdadeira vida, esteio de tantos, domínio da transcendência, quando novamente a aldeia é nave, e vai.


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